sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Um novo cais é possível

A história do cais do porto confunde-se com a história da cidade, pelo menos a da Porto Alegre tal qual como conhecemos hoje. Era 1833 e a urbe já clamava por rampas, trapiches, ancoradouros. No entanto, como uma maldição que lhe persegue, o primeiro trecho do cais ficou pronto em 1913 e o pórtico central, em 1922.

O tempo passou, a cidade cresceu e o trecho que recebeu a denominação de Cais Mauá começou a perder sua função portuária em meados dos anos 1980. Desde então, aquele espaço privilegiado procura uma integração com a cidade e a cada projeto que é proposto para o lugar, menor parece esta possibilidade.

Enterrado e judicializado o mais recente projeto de revitalização e plano de negócios para o cais (2010/2019), a proposta “tampão” é uma ocupação parcial denominada Embarcadero, ocupando o Armazém A7 e seu entorno. Mas o plano maior e que diz respeito a toda extensão do cais é mais lesivo e envolve a venda de lotes e a possibilidade de construção de outras edificações, para tornar mais atrativo aos investidores: o Projeto de Estruturação Imobiliária de revitalização do Cais Mauá, em Porto Alegre – RS, de propriedade do Governo do estado do Rio Grande do Sul.

Foto: André Ávila (ZH) - Embarcadero

A população mais uma vez é afastada de qualquer tomada de decisão sobre algo que lhe muito significativo. Não se trata apenas de recusa a uma atitude propositiva, na qual o Governo do Estado atuasse de forma a ouvir a quem tem obrigação constitucional de servir. Ele também não possibilita o diálogo a quem o busca através de movimentos sociais. Assim, invibializa a gestão democrática, impactando no direito do cidadão à cidade, como determina o Estatuto da Cidade.            

E este é um obstáculo em todos os sentidos. A elaboração de um projeto que vai alterar a dinâmica do centro de Porto Alegre tem que considerar o interesse público e não simplesmente partir da perspectiva de um plano de negócios, ainda que o local tenha que ser economicamente sustentável. Mas, os planos do governador Eduardo Leite vão além. Se antes se tratava de uma concessão à iniciativa privada, por até 50 anos, agora a entrega será, em definitivo, para a especulação imobiliária. Porto Alegre perderá um patrimônio que, mais do que público, é um patrimônio cultural inestimável.

Se a Porto Alegre fosse administrada para as pessoas, uma proposta para o cais consideraria os limites com o Lago Guaíba e todos os ônus e bônus que são decorrência desta circunstância. Ali, temos a beleza da contemplação e a reconexão com a natureza em pleno centro da cidade; mas temos também uma área inundável, cuja ocorrência traumatizante para a cidade foi a enchente de 1941. Estas características do local devem ser o ponto de partida para se pensar uma abordagem de requalificação do cais.

Qualquer edificação na área que está localizada entre a Usina do Gasômetro, os armazéns e o “muro da Mauá” é contrária à vocação do lugar e rompe com a proposta urbanística que o conecta à Praça Júlio Mesquita e ao “esquecido” Corredor Parque do Gasômetro. Também é importante lembrar a existência de várias leis que proíbem a construção em áreas inundáveis, entre elas, o Plano Diretor de Porto Alegre e o Código Estadual do Meio Ambiente.

Se o interesse público fosse respeitado, outra característica do Cais Mauá constituir-se-ia em diretriz de qualquer projeto para o local. Grande parte da sua estrutura é tombada e isto significa que não pode ser destruída, pois é patrimônio cultural, não apenas do Rio Grande do Sul, mas nacional. Seu maravilhoso pórtico e os armazéns que o ladeiam, restaurados com verbas do projeto Monumenta, têm proteção nacional. E os demais armazéns, à exceção do denominado Armazém A7, que é inventariado, são tombados pelo município.

E não apenas as edificações têm proteção. Estão incluídos o calçamento, composto pelos trilhos dos guindastes e os pisos de paralelepípedos, e o entorno destes bens culturais. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) elaborou regras para a salvaguarda do espaço que circunda todo o cais, de forma que se mantenha íntegra a paisagem característica do lugar e, naturalmente, a própria imagem da cidade.

Se o princípio da legalidade tivesse sido observado, talvez não assistíssemos aos mais de 10 anos de descaso e falta de cuidados com os prédios que compõem o conjunto Cais Mauá, protagonizados pelo consórcio que havia ganhado o edital de concorrência para revitalização, com a conivência do Governo do Estado. Hoje eles estão em péssimas condições e um dos mais urgentes desafios é recuperar, dentro das normas e preceitos internacionais de restauração de bens culturais, o conjunto que se constitui parte importante da identidade de Porto Alegre.

Entretanto, vale destacar que, ainda que protegida, a estrutura dos armazéns permite um uso bastante amplo, do ponto de vista comercial e cultural. Adaptando estas estruturas, é possível o desenvolvimento de uma vasta gama de negócios. Os mais de três mil metros de extensão do cais poderiam ser divididos em setores, contemplando todos os gostos e bolsos. Se a democratização de acesso fosse um critério observado pela administração pública, seria possível acolher desde restaurantes de alta gastronomia a botecos, para uma cerveja ao pôr do sol. E quem quisesse apenas “matear” e “jogar conversa fora”, também teria lugar para contemplação sem custos.

Lamentavelmente, Eduardo Leite optou por desconsiderar o interesse público, a participação dos cidadãos e a riqueza que é o nosso patrimônio cultural. Como num episódio de ataque de predadores a um animal doente, ontem foram abertas as inscrições para consultorias de “estudos de inteligência de mercado e de vocação imobiliária”, visando posterior venda de lotes do cais.

 Foto: Guilherme Santos/Sul21 - Audiência Pública

Só nos resta voltar ao campo de batalha, aumentar o número nas trincheiras e seguir lutando, na pretensão de que Porto Alegre tenha um cais democrático, acessível, cultural e sustentável, num mundo novo que, sigo acreditando, é possível. 





Este texto foi publicado originalmente no Jornal Matinal, em 20/11/2020 (acesse aqui)

Um comentário:

  1. e de uma arquitetura muito sofrível. Sem respeito a estrutura arquitetônica do caís. Lastimável.

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