A história do cais do porto
confunde-se com a história da cidade, pelo menos a da Porto Alegre tal qual
como conhecemos hoje. Era 1833 e a urbe já clamava por rampas, trapiches,
ancoradouros. No entanto, como uma maldição que lhe persegue, o primeiro trecho
do cais ficou pronto em 1913 e o pórtico central, em 1922.
O tempo passou, a cidade
cresceu e o trecho que recebeu a denominação de Cais Mauá começou a perder sua
função portuária em meados dos anos 1980. Desde então, aquele espaço
privilegiado procura uma integração com a cidade e a cada projeto que é
proposto para o lugar, menor parece esta possibilidade.
Enterrado e judicializado o
mais recente projeto de revitalização e plano de negócios para o cais
(2010/2019), a proposta “tampão” é uma ocupação parcial denominada Embarcadero, ocupando o Armazém A7 e seu
entorno. Mas o plano maior e que diz respeito a toda extensão do cais é mais lesivo
e envolve a venda de lotes e a possibilidade de construção de outras
edificações, para tornar mais atrativo aos investidores: o Projeto de
Estruturação Imobiliária de revitalização do Cais Mauá, em Porto Alegre – RS,
de propriedade do Governo do estado do Rio Grande do Sul.
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Foto: André Ávila (ZH) - Embarcadero |
A população mais uma vez é afastada de qualquer tomada de decisão sobre algo que lhe muito significativo. Não se trata apenas de recusa a uma atitude propositiva, na qual o Governo do Estado atuasse de forma a ouvir a quem tem obrigação constitucional de servir. Ele também não possibilita o diálogo a quem o busca através de movimentos sociais. Assim, invibializa a gestão democrática, impactando no direito do cidadão à cidade, como determina o Estatuto da Cidade.
E este é um obstáculo em todos os sentidos. A elaboração de um projeto que vai alterar a dinâmica do centro de Porto Alegre tem que considerar o interesse público e não simplesmente partir da perspectiva de um plano de negócios, ainda que o local tenha que ser economicamente sustentável. Mas, os planos do governador Eduardo Leite vão além. Se antes se tratava de uma concessão à iniciativa privada, por até 50 anos, agora a entrega será, em definitivo, para a especulação imobiliária. Porto Alegre perderá um patrimônio que, mais do que público, é um patrimônio cultural inestimável.
Se a Porto Alegre fosse
administrada para as pessoas, uma proposta para o cais consideraria os limites com
o Lago Guaíba e todos os ônus e bônus que são decorrência desta circunstância.
Ali, temos a beleza da contemplação e a reconexão com a natureza em pleno
centro da cidade; mas temos também uma área inundável, cuja ocorrência
traumatizante para a cidade foi a enchente de 1941. Estas características do
local devem ser o ponto de partida para se pensar uma abordagem de
requalificação do cais.
Qualquer edificação na área
que está localizada entre a Usina do Gasômetro, os armazéns e o “muro da Mauá”
é contrária à vocação do lugar e rompe com a proposta urbanística que o conecta
à Praça Júlio Mesquita e ao “esquecido” Corredor Parque do Gasômetro. Também é
importante lembrar a existência de várias leis que proíbem a construção em
áreas inundáveis, entre elas, o Plano Diretor de Porto Alegre e o Código
Estadual do Meio Ambiente.
Se o interesse público fosse
respeitado, outra característica do Cais Mauá constituir-se-ia em diretriz de
qualquer projeto para o local. Grande parte da sua estrutura é tombada e isto
significa que não pode ser destruída, pois é patrimônio cultural, não apenas do
Rio Grande do Sul, mas nacional. Seu maravilhoso pórtico e os armazéns que o
ladeiam, restaurados com verbas do projeto Monumenta, têm proteção nacional. E
os demais armazéns, à exceção do denominado Armazém A7, que é inventariado, são
tombados pelo município.
E não apenas as edificações
têm proteção. Estão incluídos o calçamento, composto pelos trilhos dos
guindastes e os pisos de paralelepípedos, e o entorno destes bens culturais. O Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) elaborou regras para a
salvaguarda do espaço que circunda todo o cais, de forma que se mantenha
íntegra a paisagem característica do lugar e, naturalmente, a própria imagem da
cidade.
Se o princípio da legalidade
tivesse sido observado, talvez não assistíssemos aos mais de 10 anos de descaso
e falta de cuidados com os prédios que compõem o conjunto Cais Mauá,
protagonizados pelo consórcio que havia ganhado o edital de concorrência para
revitalização, com a conivência do Governo do Estado. Hoje eles estão em
péssimas condições e um dos mais urgentes desafios é recuperar, dentro das
normas e preceitos internacionais de restauração de bens culturais, o conjunto
que se constitui parte importante da identidade de Porto Alegre.
Entretanto, vale destacar que,
ainda que protegida, a estrutura dos armazéns permite um uso bastante amplo, do
ponto de vista comercial e cultural. Adaptando estas estruturas, é possível o
desenvolvimento de uma vasta gama de negócios. Os mais de três mil metros de
extensão do cais poderiam ser divididos em setores, contemplando todos os
gostos e bolsos. Se a democratização de acesso fosse um critério observado pela
administração pública, seria possível acolher desde restaurantes de alta
gastronomia a botecos, para uma cerveja ao pôr do sol. E quem quisesse apenas
“matear” e “jogar conversa fora”, também teria lugar para contemplação sem
custos.
Lamentavelmente, Eduardo
Leite optou por desconsiderar o interesse público, a participação dos cidadãos
e a riqueza que é o nosso patrimônio cultural. Como num episódio de ataque de
predadores a um animal doente, ontem foram abertas as inscrições para
consultorias de “estudos de inteligência de mercado e de vocação imobiliária”, visando
posterior venda de lotes do cais.
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Foto: Guilherme Santos/Sul21 - Audiência Pública |
Só nos resta voltar ao campo de batalha, aumentar o número nas trincheiras e seguir lutando, na pretensão de que Porto Alegre tenha um cais democrático, acessível, cultural e sustentável, num mundo novo que, sigo acreditando, é possível.
Este texto foi publicado originalmente no Jornal Matinal, em 20/11/2020 (acesse aqui)