quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Sobre caranguejos e progresso


Olhando todo o percurso que o projeto do Cais Mauá teve até aqui e as mobilizações que o contestaram, o que chama a atenção é estreiteza de pensamento que o acompanha, especialmente daqueles que têm o poder de transformar a cidade. Já é uma constante ouvir que os que se opõem ao projeto são "caranguejos", pois o simples questionamento a um projeto ancorado no binômio shopping/torres comerciais é considerado contrário ao progresso.
Mas o que é esse progresso tão usado como defesa cega deste plano de negócios para o cais? Vamos pinçar algumas frases emblemáticas sobre o assunto:
"Qualquer tentativa de mudar alguma coisa, mesmo que para melhor, esbarra numa muralha de conservadorismo. Por acaso algum negócio hoje prospera sem estacionamento? Não quer ir de carro? Vai a pé, de ônibus ou de bicicleta". (Rosane de Oliveira, jornalista)
“Indo contra a continuidade do projeto estaremos regredindo no que tange o desenvolvimento da Capital. Se não aceitamos o progresso e não aceitarmos os shoppings centers, que movimenta o comércio, gera empregos e está sempre inovando, permaneceremos com o Cais desativado por anos” (Paulo Kruse, presidente do Sindilojas Porto Alegre). 
"Para a entidade que defende o interesse de um setor que emprega cerca de 100 mil pessoas na capital gaúcha e cidades da região metropolitana, barrar esse projeto representa um retrocesso ao desenvolvimento de Porto Alegre e à criação de novas frentes de empregos".(Felipe Vieira, jornalista, comentando a posição do Sindicato de Hospedagem e Alimentação de POA e Região).
Ou seja, o progresso e o desenvolvimento seriam alcançados sempre que fosse implantado um centro comercial, com um estacionamento bem amplo e com edifícios, para possibilitar a criação de muitas vagas de emprego. 
Vamos começas pelas vagas de estacionamento, com previsão de 4.000 na área do cais. Londres e Nova Iorque não podem ser consideradas cidades provincianas ou retrógradas. Mas, desde 2003, Londres implantou o pedágio urbano, restringindo o trânsito de veículos, incentivando o transporte coletivo e de bicicletas. Assim, além de descongestionar as vias, diminuiu a poluição na cidade. Recentemente, o valor do pedágio para carros mais poluentes foi aumentado. A ideia é ter uma cidade com mais qualidade de vida. Segue uma fala do prefeito de Londres, Sadiq Khan (out/2017):
"A cada ano mais de 9 mil londrinos morrem de forma prematura devido à má qualidade do ar, como as crianças da nossa cidade que têm os pulmões mal desenvolvidos e os adultos que sofrem de asma, demência e problemas cerebrais", explicou o prefeito à emissora "BBC".
Em 2009, Michael Bloomberg, ex-prefeito de Nova Iorque, fechou parte da Avenida Broadway para os carros e instalou praças temporárias com o objetivo de aumentar a segurança para os pedestres e diminuir o congestionamento de veículos. A medida foi implementada como um experimento e se tornou um sucesso, assim, em fevereiro de 2010, tornou-se permanente entre as avenidas 42 e 47.
© Snøhetta
Quem é "caranguejo"? Aquele que quer colocar em circulação cerca de mais 12.000 automóveis (estimativa baixa) no centro de Porto Alegre ou quem está trabalhando para restringir a entrada dos veículos na área central da cidade? 

Segundo ponto: a necessidade absoluta de colocar um shopping center na orla. Primeiro, os próprios armazéns poderiam ser recuperados e ter diferentes tipos de ocupação (não apenas "equipamentos culturais gratuitos ou lojinhas de artesanato para a população usufruir", entendimento de certa jornalista sobre a preferência dos "caranguejos"), independente de financiamento público, podendo perfeitamente ser fruto de uma parceria do poder público com o investimento privado.
Depois, o que temos ouvido falar sobre os shoppings centers? Segundo a Revista Exame:

 Foto de Seph Lawless
"20% a 25% dos shopping centers nos Estados Unidos devem fechar no espaço de 5 anos, de acordo com um relatório recente do banco Credit Suisse. Se confirmado, isso significaria o fechamento de 240 a 300 dos cerca de 1.200 shoppings existentes hoje no país". (matéria de junho/2017)

Já um site especializado em comercio eletrônico tem a seguinte opinião, na matéria "Os shopping Centers estão ameaçados de extinção?":
"Ou seja, já sabíamos que o comércio eletrônico viria pra ficar e que haveria, como realmente está havendo, crescimento continuo e longínquo nas vendas online, mas pensar que isso iria ameaçar a hegemonia dos shoppings centers e até mesmo mudar completamente alguns hábitos de consumo que duraram por décadas, demonstra o quão forte e consistente se tornou o comércio eletrônico em todo mundo." (jan/2016)
Por outro lado, e se fosse incentivada a economia criativa, apenas uma das possibilidades para além do binômio shopping/torres? Segundo  José Roberto Marques, do Portal IBC,
"A Economia Criativa tem sido considerada a grande estratégia de desenvolvimento do século XXI. Isso acontece porque ela oferece enormes oportunidades nessa área, além de um vasto campo da Cultura de Negócios, como inovar produtos e serviços, ampliar o mercado e fidelizar clientes. Tudo isso acontece por meio da incorporação de elementos culturais e criativos ao negócio".
Já para  Lala Deheinzelin, consultora com foco em Economia Criativa,
"A chamada 'Economia Criativa' é, segundo tendências mundiais, o grande motor do desenvolvimento no século XXI. Segundo a ONU é um setor que já é responsável por 10 % do PIB mundial. A UNCTAD (Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento) divulga que, entre 2000 e 2005, os produtos e serviços criativos mundiais cresceram a uma taxa média anual de 8,7%, o que significa duas vezes mais do que manufaturas e quatro vezes mais do que a indústria".(Blog Economia da Cultura)
Ela também leva em conta a questão (tão atual) da sustentabilidade:
"Uma vez que cultura, criatividade e conhecimento (matérias-primas da Economia Criativa) são os únicos recursos que não se esgotam, mas se renovam e multiplicam com o uso, são estratégicos para a sustentabilidade do planeta, de nossa espécie e, conseqüentemente, das empresas também. São como a galinha de ovos de ouro. Os países desenvolvidos já perceberam o enorme potencial deste setor e muitos fizeram da Economia Criativa uma questão de Estado".
Quem é "caranguejo"? Aquele que segue apostando em shopping centers ou quem quer investimentos inovadores, que busquem não apenas o desenvolvimento econômico, mas também a inclusão social e a sustentabilidade?

Por fim, sobre os empregos, muito do que foi falado sobre a economia criativa ou da cultura, já embasa o ponto de vista de quem se opõem ao projeto/modelo de negócio. Mas para além do comércio dentro dos limites do cais do porto, temos o comércio do centro de Porto Alegre, que resiste bravamente e tem se reinventado. Basta ver a vitalidade do nosso centenário Mercado Público, a animação dos bares de calçada e as lojas abertas ao calçamento tombadona Rua da Praia. 
Qual seria o impacto do shopping nestes empregos, que hoje dão vida ao centro histórico de Porto Alegre? Eventuais e transitórios empregos na construção do empreendimento não justificam as consequências neste ponto da cidade, que busca recuperação e tem um vasto e inestimável patrimônio histórico. 
Isso sem considerar que o centro da cidade, assim como o cais do porto, é nossa origem. E, como patrimônio histórico e cultural, também tem participação no desenvolvimento econômico e criação de empregos. O setor do turismo representa atualmente 10% do PIB mundial e aumenta uma taxa de 4.6%, de acordo com a dissertação de Luiziane Segala, que cita a professora mineira Maria Cristina Simão:
"O papel da preservação do patrimônio cultural nacional extrapola, hoje, os limites da história e da memória, uma vez que começa a cumprir um papel econômico e social. Assim, pesquisar sobre a preservação cultural e compreendê-la implica em desvendar não somente as características culturais, mas, sobretudo, em avaliar possibilidades de ampliar o leque de atividades econômicas dos núcleos urbanos possuidores de acervo cultural". 
Os empregos, portanto, não são atrelados exclusivamente ao comércio formal existente em shopping centers. Mas podem e devem estar inseridos em um contexto de sustentabilidade, preservação, inclusão e, sim, economia e desenvolvimento. A preservação de nosso cartão postal - o Cais do Porto - é a manutenção de nossa identidade, o que nos diferencia das demais cidades e que traz a curiosidade ao visitante.
Foto: Ricardo André Frantz 
Quem é "caranguejo"? Aquele que só enxerga potencial de geração de empregos num segmento específico ou quem, a exemplo de outros lugares do mundo, vê a perspectiva de conectar todos esses valores?

Portanto, quando ouço as mesmas frases em uníssono, defendendo um projeto antiquado, que não dialoga com a sociedade nem com o centro histórico, não posso acreditar que seja apenas desinformação. Talvez, o bicho, aqui, não seja o caranguejo, mas o tubarão.


Fontes:
https://gauchazh.clicrbs.com.br/opiniao/noticia/2015/09/rosane-de-oliveira-cais-maua-e-exemplo-do-jeito-gaucho-de-resistir-4851744.html
https://www.sindilojaspoa.com.br/imprensa/noticias/sindilojas-porto-alegre-reforca-o-apoio-ao-projeto-de-revitalizacao-do-cais-maua
http://felipevieira.com.br/site/tag/cais-maua/
https://g1.globo.com/carros/noticia/londres-implanta-pedagio-para-carros-mais-poluentes-no-centro.ghtml
https://www.archdaily.com.br/br/601289/pedestrianizacao-da-times-square-deve-ser-concluida-em-2016
http://eseller.com.br/blog/os-shopping-centers-estao-ameacados-de-extincao
http://www.ibccoaching.com.br/portal/como-aplicar-o-conceito-de-economia-criativa-como-estrategia-de-desenvolvimento/
http://economiadacultura.blogspot.com.br/2008/09/economia-criativa-estratgia-de.html
ftp://ftp.ufrn.br/pub/biblioteca/ext/bdtd/ValeriaSF_Parte2.pdf
SIMÃO, Maria Cristina Rocha. Preservação do patrimônio cultural em cidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

4 comentários:

  1. Maravilha de texto!!!!!isso é ter contemporaneidade,atualidade!Parabéns!

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  2. voce fumou um bagulho dos bom quando fez este texto

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    1. E você, além de se esconder no anonimato, teria capacidade intelectual de desenvolver um pensamento explicando o porquê deste seu comentário?

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