domingo, 20 de setembro de 2015

Carta aberta a Rosane de Oliveira sobre seu comentário sobre o Cais Mauá em ZH de 19.09.15

Para qualificar o debate em torno do projeto Cais Mauá, reproduzo na íntegra a resposta a colunista Rosane de Oliveira, que escreveu sobre os "românticos" e a "muralha de conservadorismo".
Foi escrito por Katia Suman e Lena Cavalheiro:


Dizem que ninguém lê texto longo na internet, que se não tiver foto de gatinho não tem a menor chance. Mas, de qualquer maneira, fica aqui registrada a carta aberta que enviamos à jornalista Rosane de Oliveira, em resposta ao comentário que ela publicou ontem em ZH, nos taxando de atrasados , românticos, responsáveis por uma verdadeira "muralha de conservadorismo"
É longo, mas ninguém é obrigado a ler.
Gostaríamos de fazer algumas observações em relação ao teu texto de sábado na ZH, te passar um pouco da visão de quem está se opondo a este projeto para o cais, ou seja, o famoso "contraditório", ok?
Vamos lá:
1. com todo respeito, uma “muralha de conservadorismo” se constrói por quem acredita que o combo-revitalização "shopping + torres + estacionamento " é sinônimo de melhoria de uma cidade.
Encarar um shopping como agente revitalizador urbano poderia ser aceitável nos anos 60 do século passado, quando o consumo de massa e a política rodoviarista estavam no topo da lista das novidades em termos de estratégias de desenvolvimento econômico e urbano de uma cidade. Hoje esse tipo de instrumento de desenvolvimento urbano torna-se a cada dia mais obsoleto, em parte pelo crescimento do sistema de vendas online (veja artigo do Estadão abaixo), em parte pela consciência de que esses bunkers no meio da cidade nada têm de urbanos, já que, entre outros efeitos colaterais, provocam o esvaziamento das ruas ao transferirem não só o comércio como também as pessoas para dentro de um ambiente fechado e controlado. As pessoas que defendem shopping e estacionamento no centro de Porto não percebem que o espaço público de uma cidade é realmente onde a cidade acontece, onde ela existe, e que portanto promover condições para que as pessoas permaneçam nas ruas, usufruam e se apropriem do espaço público de uma cidade é dever de sua gestão. Aliás, nesse sentido a Prefeitura parece ter esquecido de que ela mesma já esteve alinhada a esse pensamento, afinal o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto Alegre estabelece que um dos vetores de desenvolvimento econômico do centro da cidade é justamente o comércio de porta de rua.
O melhor exemplo dessa crise do modelo do shopping se vê nos Estados Unidos, país criador desse modelo de equipamento urbano, e que há algum tempo já começa a sentir seus efeitos colaterais. Além dos prejuízos decorrentes da retração desse tipo de economia, o país não sabe ainda o que fazer com o crescente número de edifícios desse tipo que estão em estado de abandono. Seguem aqui dois links com breves artigos sobre o tema, caso queiras buscar mais informação a respeito:
2. Uma “muralha de conservadorismo” também se constrói por quem acredita que nenhum negócio prospera sem estacionamento.
Repensar o lugar do carro nas cidades é talvez o maior desafio deste século 21. 
O que vemos hoje no mundo todo – de países desenvolvidos aos em desenvolvimento - é um movimento no sentido de diminuir o fluxo de carros em áreas centrais, qualificar transporte público e priorizar modais não motorizados, ou seja, pedestres e ciclistas. A cultura do automóvel individual, embora ainda seja propagandeada por aqueles que acreditam na ideia do “desenvolvimento a qualquer custo”, é reconhecidamente uma cadeia produtiva extremamente nociva não só ao meio ambiente mas também ao ambiente urbano e à saúde mental e social do ser humano. Falando especificamente do ciclo final dessa cadeia, o excesso de automóveis individuais nas cidades, além de congestionarem as vias e com isso dificultarem o deslocamento entre pontos, gera impactos negativos também no ambiente por onde circulam. A poluição do ar, da visão e do som faz com que ruas muito movimentadas tenham seus imóveis residenciais desvalorizados – ninguém quer morar em rua barulhenta - bem como diminuem significativamente a presença de pedestres circulando – ninguém quer caminhar por rua barulhenta – o que por consequência acarreta a desvalorização de imóveis comerciais voltados para a rua. E assim o círculo vicioso de esvaziamento e desvalorização de uma rua se completa, e é exatamente o que vemos no horizonte da nossa avenida Mauá, hoje, já vazia e desagradável, o que só tende a piorar com o aumento exponencial do tráfego de automóveis estimulados pelas 4 mil vagas de estacionamento junto ao Cais.

3. Uma “ muralha de conservadorismo” se constrói por quem acredita que os românticos são contra a iniciativa privada.
Pelo contrário, achamos que o instrumento PPP é bastante apropriado, desde que devidamente regulado pelo Estado em prol da cidade. A questão é que isso não está acontecendo: a regulação não existe, a iniciativa privada comanda a operação, define o que quer à revelia da lei e modifica incessantemente o projeto buscando enxugar recursos. Que fique bem claro, queremos sim a revitalização dos armazéns e seu uso para comércio, restaurantes, serviço e cultura. O que não aceitamos é o argumento de que a desfiguração da área com um projeto mutilado é a única possibilidade. Esse discurso de "ou é isso ou é nada" não cola.
4. Uma “ muralha de conservadorismo” se constrói por quem acredita que os “românticos” veem como exemplos a serem seguidos o caso de Puerto Madero e do Porto de Barcelona.
Não é verdade. Sem nem entrarmos no mérito de erros e acertos desses dois projetos de “referência”, a tentativa de comparação esbarra em dois fatores básicos: 1. O nosso porto é significativamente menor do que os outros dois e praticamente não há possibilidade de expansão – a área disponível nas dependências do cais é relativamente pequena, e ele está totalmente envolvido pela cidade, portanto não há para onde crescer. Essa dificuldade de expansão – e obtenção de retorno financeiro com as transações imobiliárias que daí derivam - está demonstrada claramente no atual projeto, em que se tenta desesperadamente equacionar índices construtivos de ocupação do solo na área das torres e do shopping, na tentativa de tornar o empreendimento viável - coisa que aliás parece não ter ocorrido ainda, dada a quantidade de alterações que o projeto tem sofrido nos últimos anos. 2. Porto Alegre não é uma cidade com o perfil turístico de Barcelona ou Buenos Aires. Para fins de comparação, em 2014 Porto Alegre arrecadou cerca de 19 milhões de reais com tributação relacionada ao turismo; no mesmo período, Barcelona, que é a quarta cidade mais visitada da Europa movimentou mais de 14 bilhões de euros e em Buenos Aires os turistas gastaram mais de 3 bilhões de dólares. Esses dados demonstram ainda que, além da comparação impossível em termos de modelo de gestão, tipo de equipamento urbano a ser implantado etc, a ideia divulgada pela prefeitura e empresa consorciada de propor uma ocupação da área com vistas a um retorno de arrecadação para a cidade através do turismo é uma visão, no mínimo, ingênua.
O que sim os “românticos” veem é que um modelo de reocupação bem sucedida da área deve se basear na ideia de reintegrar esse pequeno trecho de tecido urbano ao restante do centro da cidade, não só em termos de espaço, mas também de cultura e economia. O futuro do Cais como empreendimento autossustentável – e de Porto Alegre como uma cidade referência em planejamento urbano - está na ideia de pensar aquela área como parte de um conjunto maior – a região central e a cidade – e que tipo de benefícios ela pode trazer para o todo, não só em termos de retorno financeiro imediato – geração de empregos na construção civil ou nas lojas do shopping, por exemplo - mas também em que tipo de benefícios socioeconômicos ela pode trazer em um horizonte de médio, longo prazo. Destinar parte dos armazéns para usos voltados à educação e bem-estar físico e social pode, por exemplo, ajudar a enxugar as contas da saúde e da educação das crianças no futuro, hoje tão precárias e tão carentes de investimento.
5. Uma “muralha de conservadorismo” se constrói por quem acredita que os românticos estão atrasados em seu discurso, tentando reverter o irreversível.
Em primeiro lugar, importante deixar claro que, ao contrário do que tem sido divulgado por correntes defensoras do atual projeto, o processo de apresentação e discussão de possíveis projetos para o cais com a população passou ao largo da ideia de um “amplo debate”. Desde o estabelecimento das diretrizes urbanísticas que delinearam o modelo de negócios até o estágio atual em que se encontra o projeto, a postura predominante foi a da tomada de decisões a “portas fechadas”, com divulgação de informações e apresentações apenas pro forma. Se houve audiências públicas anteriores a essa, a prova cabal de que não houve interesse, por parte da prefeitura ou da empresa consorciada, em estabelecer um diálogo efetivo com a população está no fato de que nem nos mecanismos de busca do site da prefeitura, nem na página da consorciada é possível encontrar qualquer referência a eventos de discussão pública anteriores a esse.
Tu mesma pode fazer essa busca se quiseres verificar:
Além disso, a legislação é clara: enquanto se analisa o EIA/RIMA para conceder a Licença Prévia, o projeto pode sim sofrer alterações ou mesmo ser negado. Portanto a Audiência Pública não serve apenas para esclarecer o projeto, mas para o órgão ambiental receber novas informações e sugestões visando a licença. Ou seja, embora seja consultiva, dependendo dos argumentos e importância do que se apresentar o órgão ambiental tem a obrigação de considerá-los na Licença Prévia. Portanto questionamentos nessa etapa estão absolutamente dentro da normalidade protocolar. Por outro lado, o empreendedor afirmar que "descarta alterar o projeto" nessa fase é no mínimo desconhecimento da legislação, para não dizer arrogância. E essa distorção tem a ver obviamente com a conduta de subserviência do nosso poder público, que fez crer que o simples recebimento do documento era uma vitória e que não caberia questioná-lo. É triste quando essa postura deseducadora da cidadania encontra eco em alguns formadores de opinião.
O fato de estarmos questionando pontos do projeto que ultrapassam os temas ambientais e de tráfego – que em si já são suficientes para a ruína desse projeto – se embasa na constatação de que a cada nova leva de documentação divulgada há uma crescente queda da qualidade do projeto original em prol de uma melhora na “taxa de retorno do investimento” (que ainda não parece ter sido atingida). Isso demonstra não só a desqualificação do projeto atual mas também invalida qualquer consulta/aprovação pública realizada previamente, uma vez que o projeto já não é mais o mesmo e, mais profundamente, demonstra a inviabilidade do modelo formulado pelo poder público através do CAUGE (Comissão de Análise Urbanística e Gerenciamento da Secretaria do Planejamento de Porto Alegre) e portanto a necessidade de uma revisão estrutural do processo.
6. Por fim, uma “muralha de conservadorismo” se constrói por quem acredita que os românticos não têm o poder de realizar mudanças no curso da história da cidade.
Que fique bem claro que os românticos de Porto Alegre já conseguiram, entre outros, criar o Parcão, que antes de se tornar parque nos anos 50 quase foi loteado para a construção de cerca 40 edifícios, assim como conservar o Mercado Público e a Usina do Gasômetro, que na década de 70 quase foram demolidos para "melhorar o trânsito" da região. E é nesse mesmo espírito que seguiremos insistindo que se realize um projeto para o Cais Mauá que efetivamente seja positivo para a cidade.
Vou te colar alguns links com referências, ok? Tudo coisa rápida. Nem vou indicar livros, porque sei que o tempo é curto.
* Amanda Burden, urbanista de NY fala sobre a High Line, linha férrea elevada de carga dos anos 30, desativada nos anos 80, que cruza Manhattan. A linha ia ser demolida, mas um grupo de românticos impediu. E hoje ela é o espaço público mais visitado da cidade.
* Como a cidade de São Francisco aproximou as pessoas da orla, retirando uma highway que funcionava como barreira. (aqui, ao contrário, construíram 6 pistas na orla do Guaíba. O ex-presidente Sarkozy tentou correr na orla, mas achou muito barulhento e poluído.)
* A comissária de transportes de NY (que virá ao Fronteiras este ano) Janete Sadik-Khan fala sobre a experiência de fechar para carros a Broadway, criando uma área para pedestres e ciclistas de 50 mil m2. Os comerciantes foram contra num primeiro momento, porque acreditavam que sem carros os negócios cairiam e o que aconteceu foi justamente o contrário.
* Em Milão, capital da moda e do design no mundo, está sendo construído um estádio para 48 mil pessoas, sem estacionamento. Qual é a lógica? Convidar as pessoas a usarem outros meios de locomoção para acessá-lo.
obrigada pela atenção
beijo

CAIS MAUÁ DE TODOS

9 comentários:

  1. Incondicional apoio aos românticos. Para lembrar que nos idos de 1999, no primeiro ano do governo Olivio Dutra, a direção do MAC - Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul foi estimulada a propor a nova sede do museu no Cais Mauá: o primeiro prédio pensado foi o armazém das tesouras, que, inexplicavelmente, após ter entusisasmado os visitantes da Bienal do Mercosul daquele ano, inexplicavelmente "pegou fogo" num dia de grande chuva. Fomos em busca de outros prédios, visitando a fábrica de gelo e, finalmente, optamos pelo armazem mais próximo da Usina. A proposta foi levada adiante pelas outras direções do MAC nos períodos seguintes e, inclusive, acatada e desenvolvida enquanto projeto. Em algum momento, inexplicavelmente (parece que inexplicável é uma recorrência no que diz respeito aos trâmites do Cais Mauá), o MAC sumiu do mapa do cais e, até hoje estamos a ver navios. A idéia do museu no cais era, e é, compatível com as expectativas de revitalização do local, no que diz respeito, principalmente, ao seu uso cotidiano. O museu seria um grande centro de difusão da arte contemporânea e um veículo de formação para jovens estudantes... Bom, esse é só mais uma prova do quanto essa conversa toda passa ao largo dos interesses da população de Porto Alegre. Parabéns Katia e Lena pela carta aberta. Subscrevo incondicionalmente. Paulo Gomes

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    1. fico pensando no incêndio no Mercado Público e se essa sanha imobiliária não estaria por trás. à época, inclusive, o Sant'ana (paulo) fez uma cronica propondo o que? um shopping no local. Lindo né? #sqn
      tenho medo do que será do J|ardim Botânico após o sucateamento da Fundação.

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  2. Parabéns! Vale o poema de Walter Benjamin, o progresso sopra um anjo que anda prá trás, em direção ao futuro, para reconstruir o que ficou em ruínas. Laurie Anderson canta isso, de maneira linda, the Dream Before. Saludos, Lulkin

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  3. O projeto da Cais Mauá do Brasil é um plano de negócios para explorar o espaço público. Acho que o MAC seria perfeito no local, traria o turismo (que tanto o empreendedor diz que o centro comercial e as torres vão trazer!) e cultura, mas em harmonia com o Centro Histórico. E é por isso que devemos seguir lutando. Já existem denúncias contra irregularidades em 3 promotorias do Ministério Público Estadual, no Ministério Público Federal e Defensoria Pública. Temos que mobilizar a sociedade, em especial a classe artística, para defesa de nosso cartão postal. Agradeço a participação e a divulgação da causa! Abraço!

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  4. As proximas geraçōes irão usufruir o espaço, mais 30 anos e tudo ficará como está.

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  5. Tudo isso porque os idealizadores do projeto deixaram de discutir as 'benfeitorias' com a população...

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  6. Porto Alegre é a cidade da diversidade. Crianças, adultos, negros, brancos, pobres, ricos, sem distinção de sexo, ideologia ou religião. Logo os espaços públicos precisam contemplar os diferentes perfis de cidadãos portoalegrenses. Há quem gosta de loja de artesanatos e há quem prefira shopping centers; há quem prefira comida caseira e há quem prefira cozinha internacional; há quem prefira tomar uma cerveja e há quem prefira um bom vinho; há quem prefira música gaúcha e há quem prefira sertaneja, pagode ou rock and roll; Há quem prefira o velho e há quem prefira o novo; há quem prefira o retrô e há quem prefira o futurista. Da mesma forma, os meios de transportes também devem contemplar todos os modais: pedestres, bicicleta, carro, ônibus, trem, catamarã. Viva a diversidade portoalegrense e viva o Caías Mauá!

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  7. Engraçada essa aversão de dona Rosane ao Romantismo! O melhor dessa história é ver como são pródigos em (des) qualificar os que discordam de suas idéias (idéias?!) e como ficam melindrados quando são contrariados esses da RBS.
    No mais, está só perfeita a resposta. Essa senhora deveria evitar de qualificar alguém de qualquer coisa. Para qualificar alguém, ou algo, primeiro, deve-se ter alguma qualificação para tal. O que não é, definitivamente o caso
    .

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  8. Engraçada essa aversão de dona Rosane ao Romantismo! O melhor dessa história é ver como são pródigos em (des) qualificar os que discordam de suas idéias (idéias?!) e como ficam melindrados quando são contrariados esses da RBS.
    No mais, está só perfeita a resposta. Essa senhora deveria evitar de qualificar alguém de qualquer coisa. Para qualificar alguém, ou algo, primeiro, deve-se ter alguma qualificação para tal. O que não é, definitivamente o caso
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