A expressão patrimônio cultural traz certa confusão quando é utilizada. Por
conta do nosso processo histórico, de construção do país como nação, muito se
falou em Patrimônio Histórico, e ainda se ouve frequentemente esta designação.
Não é à toa que o órgão federal de proteção ao patrimônio cultural brasileiro
chama-se Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
A
arquitetura foi utilizada como referência de identidade e as construções
coloniais portuguesas, sua concretização. Assim, é comum relacionar patrimônio
cultural com edificações, pois, por muitos anos, essas eram a forma mais
evidente de expressão do patrimônio nacional. Mas, como no resto do mundo, esta
percepção mudou.
Hoje, o patrimônio cultural está definido em nossa Constituição
Federal, no art. 216: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de
natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira”. E nossa Carta Magna vai além, elencando as
possibilidades de apresentação de nosso patrimônio.
As hipóteses previstas nos
incisos subseqüentes indicam as formas de expressão; os modos de criar, fazer e
viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos,
documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações
artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
Como se vê, a expressão patrimônio cultural abarca aquilo que se vê, que se
toca, e também o que é intangível. E por conta dessa ampliação, o tema deve ser
tratado de maneira transdiciplinar, uma vez que diz respeito a um universo de
possibilidades, envolvendo uma gama de profissionais, para além do consagrado
saber dos arquitetos.
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Pórtico e armazéns tombados; foto Jacqueline Custódio |
Feitas essas considerações, podemos aplicá-las ao
patrimônio cultural mais perto de nossa realidade e, atualmente, merecedor de
atenção: nosso cais do porto. Por conta de um malfadado contrato de concessão, o
cais amargou outros 10 anos de negligência e, agora, uma nova proposta está em
gestação pelo Governo do Estado e que precisaria ser pensada nesse contexto
patrimonial.
O Cais Mauá, cujas construções constituem a referência histórica da
cidade, é um lugar que se adéqua totalmente ao conceito de patrimônio cultural.
Quando pensamos no cais, nos vêm imediatamente o pórtico central, imponente
estrutura de ferro e vidro, e os armazéns que formam um ziguezague com seus
telhados. Visto assim, estamos considerando os componentes arquitetônicos dos
prédios, patrimônio edificado ou material.
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Praça Edgar Schneider, foto de Isadora Neumann |
Se formos além, temos os espaços
abertos que também são elementos indissociáveis das edificações. São as praças –
sim, existem praças no cais – o calçamento, os vazios entre os prédios, o
Guaíba. Podemos chamar estes elementos de entorno, que é um termo consagrado e
protegido juridicamente, porque alterações nestes elementos podem modificar a
percepção visual da edificação preservada ou adulterar a ideia do conjunto que
lhe é característico. Aprofundando um pouco mais a análise, este conjunto que
compreende edificações, entorno e história do lugar vai dar estrutura a outro
tipo de patrimônio, o paisagístico. Este bem patrimonial não se restringe à
paisagem natural, na qual o Rio Guaíba constitui-se um componente fundamental,
e à estética das construções antigas. Estamos diante do conceito de paisagem
cultural, que agrega a natureza e o edificado, mas que se torna cultural, pela
utilização do lugar, ou seja, através de sua dimensão social.
A paisagem
cultural do Cais Mauá consolidou-se como identidade de Porto Alegre, imagem pela
qual seus cidadãos se reconhecem e têm seu referencial territorial, um marco que
distingue a cidade de qualquer outra. Como se vê a estética da paisagem
constitui-se a identidade, como entende o filósofo italiano Paolo D’Angelo, por
traduzir a especificidade de cada lugar.
Por mais etéreos que pareçam estes
conceitos de paisagem cultural, entorno ou identidade estética, estamos diante
de fatos jurídicos relevantes ao Direito. Fatos que podem e devem ser
trabalhados em ações processuais, envolvendo não apenas as questões de proteção
e preservação de patrimônio cultural, mas também na perspectiva de meio ambiente
e do direito essencial à sadia qualidade de vida. E todo e qualquer projeto que
diga respeito ao Cais Mauá deve respeitar estas normas ou estará sujeito ao
escrutínio judicial, além, é claro, do juízo social.