quinta-feira, 25 de abril de 2019

Porque o Cais Embarcadero é uma cortina de fumaça


Há muitos dias, estamos sendo bombardeados pela chamada grande mídia com a notícia de que, em setembro, será inaugurado o “Marco Zero” do projeto de revitalização do Cais Mauá, que leva o nome de Cais Embarcadero. Com pompa e circunstância, e direito a mimos caros anexados aos convites, foi realizado um evento no dia 22 de abril, que contou com a presença do prefeito e de vereadores, além do público-alvo, investidores e comunicadores.
Foto: Fabiano do Amaral (Site Correio do Povo, 22/04/2019)

Muita festa e confete, sempre com o propósito de passar a imagem de que alguma coisa está em andamento no local em que já deveria estar em obras, pelo menos desde dezembro de 2017, quando o consórcio de empresas que é responsável pela execução do projeto recebeu a última licença, a de instalação. Mas nada ocorreu até agora. E por quê?
Diferente de tudo o que é dito pelo consórcio, e amplamente divulgado pela imprensa, a culpa não é da burocracia, nem da sociedade civil. A responsabilidade é exclusiva do grupo que assinou, em 2010, um contrato de arrendamento com o Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Naquele contrato, assim como no edital de licitação, há uma cláusula cujo objetivo é assegurar a execução do projeto. O grupo que ganhasse a licitação deveria apresentar uma carta de capacidade financeira de R$ 400 milhões.
Esta garantia jamais foi apresentada, fato que vem contando com a anuência de vários gestores públicos, contrariando o princípio administrativo da supremacia do interesse público. A captação de recursos foi proposta a partir de investimentos em fundos de pensão, tendo sido constituído o Fundo de Investimento em Participações Cais Mauá (FIP Cais Mauá). Muito dinheiro foi investido neste fundo, mas os recursos jamais foram aplicados nas obras.
Na Siqueira Campos, um dos endereços que tiveram 
busca da Polícia Federal nesta manhã

Foto: Ronaldo Bernardi / Agência RBS (20/04/2018)

Por conta disso, a Polícia Federal deflagrou a operação Gatekeeper, que investiga – ainda está em atividade – o desvio de recursos, tendo feito apreensão de bens de pessoas ligadas à administração do consórcio Cais Mauá do Brasil S.A., naquela ocasião. Em Palmas (TO), existe uma CPI para apurar o desparecimento de R$ 30 milhões, sendo que o atual gestor do consórcio, Eduardo Luzardo da Silva, já foi chamado a dar esclarecimentos naquela cidade.
Ou seja, não há dinheiro, nem credibilidade para o projeto. E quem diz isso? Luiz Felipe Terra Favieri, da LAD Capital, atual empresa responsável pela captação de recursos:O Cais vem de um estresse muito grande. Assumimos, implementamos um diagnóstico e verificamos falhas como falta de liquidez, de credibilidade e necessidade de ajustes contratuais” (site Radio Guaíba, 22/03/2019).
Frente o adiamento interminável do início das obras, da incapacidade financeira e da falta de credibilidade no mercado, o atual governador, Eduardo Leite, constituiu um grupo de trabalho para analisar o caso. Em 08/04/2019, o grupo reuniu-se para apresentar suas conclusões, que apontavam para que o contrato de arrendamento fosse rescindido, por descumprimento de cláusulas.
Entre os problemas citados, está uma dívida de cerca de R$ 6 milhões para com o Estado, perda de prazo para o licenciamento ambiental e a falta e descumprimento da cláusula que obriga o reparo de danos e avarias aos armazéns. Além disso, um parecer emitido pela Procuradoria Geral do Estado considera que o consórcio perdeu o direito a reajustar o contrato.
Foto: Itamar Aguiar (Site do Jornal do Comércio, 12/04/2019)
Então, o Cais Embarcadero é um paliativo, para agradar à população, que acredita que terá acesso ao cais, e uma tentativa de demonstrar que algo está sendo executado. Mas o que está sendo apresentado não consta do projeto inicial, que foi resultado de um edital e definido entre as partes, servindo de chamariz para eventuais interessados. Aliás, outra irregularidade. 


Foto: Katia Suman, 16/10/2017
Sua execução não resolve os problemas citados. E sem entrar no mérito da qualidade do que é proposto de forma emergencial para aquela área, como ficarão os armazéns, que estão sofrendo um processo franco de degradação? Lembrando que a primeira etapa da revitalização seria a restauração dos armazéns, cujo projeto de restauro já havia sido aprovado pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico (IPHAN), além do já citado dever de manutenção e conservação daqueles bens tombados. 
Foto: Jefferson Botega (site GaúchaZH, 22/11/2017)

Somado a esse fato, está em curso um inquérito civil na Promotoria de Defesa do Meio Ambiente (Ministério Público Estadual), referente ao bens tombados, uma Inspeção Especial no Tribunal de Contas do Estado e o Ministério Público de Contas também aponta o descumprimento contratual. As irregularidades são evidentes. Há 4 ações judiciais questionando a proposta de revitalização, sendo que 2 delas pedem a rescisão do contrato por descumprimento de cláusulas. Assim, resta a pergunta: os administradores públicos e representantes do legislativo não temem ser responsabilizados por este dano ao patrimônio público e por improbidade administrativa?


terça-feira, 9 de abril de 2019

HONESTIDADE PÚBLICA

Transcrevemos abaixo a resposta do Prof. Dr. Francisco Marshall ao texto do jornalista Paulo Germano, na Zero Hora de hoje, cujo título é "A desonestidade da esquerda sobre a concessão de parques e praças à iniciativa privada em Porto Alegre":

Meu caro Paulo Germano, tu sabes o quanto te admiro, mas devo te dizer que fiquei bastante desencantado com o título dado a esta matéria de tua autoria, e o tratamento dado a assunto de interesse público. Situar temas relevantes em debate como se fossem apenas enfrentamento esquerda x direita é tudo o que não precisamos, sempre, mas hoje mais que nunca, e é também uma fuga improdutiva da objetividade da discussão. Esta estigmatização é uma das principais causas do atraso político e cultural hoje vigente. Lastimável formulares deste modo uma discussão pública.

Quanto ao projeto proposto pelo prefeito Marchezan Jr., merece, sim, discussão e análise ponderada. Seria uma catástrofe impor medida tão drástica sem exame profundo. São sempre suspeitos e geralmente culpados os que querem açodar com urgências ao exame e ponderação de discussões do interesse público.
Parques e praças têm em sua natureza o caráter público, o que permite abertura a todos e desfrute coletivo. São espaços de encontros, trocas, fruição livre, vida compartilhada. É dever da administração não apenas zelar por estas áreas, como implantar novos parques e praças, de acordo com a dinâmica da cidade. Porto Alegre precisa de mais parques.
A alienação do caráter público é uma grave ofensa à fronteira entre público e privado que marca o Estado moderno (desde os gregos, reafirmada no Iluminismo). O discurso da eficiência, gasto de tanto uso nas mãos liberais, esconde outro problema, a qualidade de gestão, e revela outros cacoetes: a ganância privada sobre o patrimônio público, a intrusão de finalidades indevidas (anúncios, restrições, desvios funcionais - quando algo voltado ao lazer ou à cultura passa a ser regido pela busca do lucro) na esfera pública. A privatização não é solução mágica e é imprópria para muitos bens e serviços públicos.

Cumpre lembrar que Porto Alegre vive o tormento de ser vítima de uma fraude exemplar, a falcatrua do Cais Mauá, em que relações mais que obscuras entre empreendedor privado e autoridades públicas produzem esta vergonha máxima. Nada realizam, não possuem capital, desdenham o edital, postergam, montam palanques para anunciar obras que nunca ocorrem, nunca fazem nada, envolvem-se em delitos aqui e em todo o país, descuidam da conservação do patrimônio (exigida em edital), e depois de 9 anos enrolando (não a mim, à AMACAIS e a quem conhece o caso), propõem um puxadinho (estacionamento e "beach club") em tudo discordante dos termos contratados em edital. Diante deste exemplo monumental, que esperar de contratos similares, com este tipo de autoridades e de empreendedores (ambos de araque)? E que dizer da imprensa, que deveria vigiar e denunciar, e segue boboca, aplaudindo uma fraude monumental? Com quem vamos defender a esfera pública? Com as incorporadoras e seus lacaios, edis e funcionários cativos, jornalistas com bandeirinhas na mão?
Você pode me taxar de esquerda e pôr nova pá de cal no debate. Afinal, sou filiado ao PSOL (com orgulho), firme apoiador de Fernanda Melchionna, admirador de Marcelo Sgarbossa e sempre pronto a argumentar em favor de uma pólis que ora aparece como cidade, e muito mal administrada, mal cuidada. Abafar o debate será ótimo para quem quer impor suas metas sem ponderação. Inobstante, os fatos objetivos e os argumentos continuarão ali, aqui, por tudo, vivos. Leia-se o que diz Gerson Almeida, por exemplo, que nada tem de desonesto e infantilóide (!), como afirmaste ofensivamente, Paulo Germano. E quem tem a mente no centro que importa - a ágora - seguirá trabalhando e tentando construir uma cidade melhor para todos, na esfera pública.

A coluna do jornalista pode ser acessada em https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/paulo-germano/noticia/2019/04/a-desonestidade-da-esquerda-sobre-a-concessao-de-parques-e-pracas-a-iniciativa-privada-em-porto-alegre-cju93hz3600c001rtdlcd14gv.html?fbclid=IwAR0N8MFNWlj8wAK2B5a58H2whIWiMEP0ccSixfSWWNMZnf_KWpZr1PJWSUk

segunda-feira, 25 de março de 2019

O “Laçador” é mais do que monumento


Já faz algum tempo, está em curso uma campanha propondo a retirada do monumento do Laçador do lugar em que hoje está localizado. A justificativa aparente é de que ele estaria "escondido" da população e, devido a sua importância, deveria ser realocado para um lugar mais central, como a orla ou o Parque da Redenção. Contudo, creio que são necessárias algumas reflexões acerca dessa proposta.

A obra é de autoria de Antônio Caringi e foi a vencedora de um concurso de esculturas, cujo objetivo era exibi-la no estande de nosso estado, na Exposição-Feira Internacional do Parque do Ibirapuera, em 1954. Posteriormente, seria doada à cidade de São Paulo, em comemoração a seus 400 anos.


Porém, a peça retornou ao estado e foi adquirida pelo nosso Município, sendo, então, fundida em bronze para instalação em logradouro público, originalmente, no Largo do Bombeiro. E a escolha do local foi justamente a entrada da cidade, para dar as boas-vindas aos que chegavam, tornando-se símbolo de Porto Alegre.

Em 2007, o monumento foi transferido para seu sítio atual, para dar espaço à construção de um viaduto. O novo lugar foi escolhido dentro da perspectiva de proximidade ao local original, justamente para manter o significado que acabou sendo incorporado ao monumento. Para facilitar a visitação de turistas e nativos, foi projetado um espaço com estacionamento e outros recantos.

Contudo, o deslocamento da estátua, ampliado por problemas de conservação daquele sítio, acabou por retirar da figura do Laçador parte de sua força identitária. Agora, uma nova alteração está sendo proposta, mais uma vez desconsiderando a ligação entre o monumento, seu simbolismo e diretrizes das cartas patrimoniais internacionais, que contemplam, inclusive, o conceito de patrimônio ambiental urbano.

Se foi traumática a retirada do monumento de seu sítio original, não menos impactante será sua transferência para um local absolutamente alheio ao contexto no qual a estátua foi reconhecida como ícone de Porto Alegre. Uma vez que está estabelecido na entrada da cidade, ali deveria permanecer, sem que com isso representasse um distanciamento da população.
 
Foto: Felipe Rech Meneguzzi
Existe uma mobilização da administração municipal e da iniciativa privada em promover o 4º Distrito como polo cultural e econômico. A revitalização proposta para a região, que envolve o bairro onde está localizado o Laçador, deveria prever uma conexão com o local nestas ações. Um exemplo simples seria a colocação de um roteiro da Linha Turística para aquela região, contemplando uma visita ao sítio do monumento.

É importante frisar que novos conceitos sobre o patrimônio cultural apontam para a conservação integrada, recomendada pelo Manifesto de Amsterdã. A preservação dos bens culturais deve estar em consonância com o Plano Diretor, pois a cidade deve ser considerada a partir de sua diversidade sócio-cultural e de sua natureza dinâmica.
Foto: Paulo RS Menezes
Assim, pelo valor inestimável que tem o monumento do Laçador para Porto Alegre, qualquer proposta de retirá-lo do lugar em que hoje se encontra deve, necessariamente, considerar que, mais do que um patrimônio cultural tombado, a estátua hoje tem um valor simbólico, cuja origem está no papel de acolhedor aos visitantes de nossa cidade.



Foto Antiga: http://prati.com.br/porto-alegre/porto-alegre-monumento-ao-lacador-1950.html