segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Porto Alegre dos bondes!

Uma das últimas lembranças que tenho com meu avô, quando ele ainda estava bem de saúde, foi pegar um bonde, cujo destino não tenho o registro. Já havia sido noticiado o fim dos veículos esquisitos, que andavam agarrados aos trilhos e a fios elétricos, e aquelas seriam as suas últimas viagens. Depois, com o tempo, as marcas dos trilhos nas ruas foram desaparecendo, cobertas pelo asfalto, e a garagem da Carris, que ficava perto do Parque da Redenção, foi demolida, para dar lugar a avenida, celebrando os automóveis, novos astros de uma era. 
Foto: http://www.carris.com.br/default.php?p_secao=71
Minhas memórias confundem-se com as memórias de Porto Alegre. E assim como para mim, a lembrança dos bondes são os registros de uma época em que a cidade ansiava pela modernidade, vislumbrada pela vinda dos veículos a diesel e gasolina. Mas os bondes transformaram-se em marcos referenciais da vida da população até 1970, quando o último bonde parou.
Fonte https://www.facebook.com/pg/atelierdobonde/photos/?ref=page_internal

A medida em que os anos foram passando, aqueles veículos sem uso, foram sendo sucateados, desmanchados e esquecidos. Alguns tiveram uma vida mais longa, ocupando local de destaque em escolas da capital. Mas um, em especial, teve brilho ainda maior, agregando criatividade e memória: o bonde da Tristeza. Por anos, serviu como palco da arte e da cultura, do fazer artístico, da fruição, do encontro das pessoas com a sensibilidade na zona sul da cidade.
Um dia, teve que sair da sua já tradicional morada, correndo sério risco de se perder, como os demais. Angela Ponsi e sua mãe, Zilka, que já o tinham salvo uma vez, persistem em sua proteção, dando-lhe novo destino e buscando a sua merecida recuperação.



Angela é a autora do projeto de restauração do bonde, que deverá acontecer com recursos da Lei Rouanet, de incentivo à cultura. É um projeto muito relevante para a cidade, tendo em vista que este é um dos últimos remanescentes da frota e que se encontra em razoável estado de conservação. Ele representa nossa memória viva e é fonte de referência, para os que vieram e virão depois de nós.
Porto Alegre precisa se reconhecer através daquilo que lhe representa: somos a Usina do Gasômetro, somos o Cais Mauá e o Guaíba, somos o Parque da Redenção. Esta é a nossa identidade. E os bondes eram personagens importantes da história desta cidade, que não precisa e nem pode deixar de ter a sua personalidade, para alcançar o desenvolvimento tão almejado.
Assim, a notícia do projeto de restauração do Bonde da Tristeza é um grande alento e alegria não só para a zona sul, mas para nossa cidade, tão carente de auto-estima. E esse bonde é um destes referenciais que nos tocam a alma e nos ajudam a conhecer nossa trajetória. Vida longa ao bonde!!!!!!

Outras matérias: 
http://www.meubairropoa.com/zona-sul/tristeza/atelier-do-bonde-elabora-projeto-de-restauracao-de-locomotiva/?fbclid=IwAR0kbyZ3OkTH1jMhKcgK-Yx_6hn2jGeLc8PPy2xduSqfMoo_pIJ7ZyYokg0
https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=2256628137916012&id=349960648405663

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Buscamos Herederos!

Nos dias 23 e 24 de outubro, na cidade de Buenos Aires (Argentina), ocorreu o evento promovido pela ONG Basta de Demoler, do qual participaram representantes dos países da Bacia do Prata: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Foi o 2º Encuentro de Gestón de Patrimonio Arquitectónico y Urbano Cuenca del Plata, cujo tema foi "Buscamos Herederos".

O tema proposto, a busca por sucessores, tem sentido, pois a luta pela preservação de nossa história e memória parece estar se afastando do cotidiano das novas gerações, pelos mais variados motivos. Estavam presentes neste encontro pessoas que estão nesta batalha há muitos anos e que têm enfrentado todos os tipos de dificuldades que encontramos na defesa de nossos bens, em especial, nosso patrimônio material.
Ao longo das falas, ficou muito evidente que temos obstáculos comuns, embora possamos estar em diferentes níveis de desenvolvimento de políticas patrimoniais protetivas. Um dos painéis discutiu questões jurídicas dos diversos países, onde se viu que existem leis de proteção do patrimônio, sendo que algumas estão sendo alteradas, como é o caso do Paraguai. Já no Uruguai, existe uma proposta de utilização de critérios objetivos e numéricos, para determinar benefícios para os proprietários de bens a serem protegidos.
Palacio Roccatagliata (Foto: Maxi Failla)
Contudo, chama a atenção que, embora exista legislação protetiva em todos os países, ela tem sido sistematicamente ignorada, quando é necessária sua aplicação contundente. E disso decorre um enfraquecimento da atuação cidadã, que precisa sempre ter fundamentos legais para justificar suas reivindicações. Mas, aparentemente, o inverso não parece ser exigido, chegando ao extremo da ONG que organizou o evento estar respondendo na justiça, por ter exercido seu direito de reivindicar a proteção de bens históricos, como foi o caso Palacio Roccatagliata.
Em comum, também, é a perda quase que diária de bens patrimoniais, quer seja por negligência dos proprietários, sejam eles particulares ou públicos, quer seja por interesses da especulação imobiliária. O mais comum é que ambos estejam associados, resultando a demolição de nossa história e memória.
O movimento Chega de Demolir Porto Alegre, que teve seu nome e atuação inspirado no Basta de Demoler, foi convidado a participar, através de sua articuladora, Jacqueline Custódio. O caso que foi apresentado foi o do Cais Mauá e toda mobilização popular para a preservação do patrimônio histórico e pela lisura dos procedimentos administrativos, que devem visar o interesse público, acima de tudo.

Como resultado do evento, houve uma aproximação dos diversos movimentos em prol do preservação de nosso bens e de nossa identidade, oriundo dos 4 países, numa troca extremamente importante para conseguirmos avançar nas lutas não só de manutenção de referenciais de nossa memória, mas pela busca de uma qualidade de vida para todos.


Para assistir o que foi discutido, acesse os vídeos disponíveis no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=Xzmd76cJk28 (este tem a apresentação do Chega de Demolir Porto Alegre -  minuto 28 até 1h e 4 min)

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Leis do inventário de Porto Alegre

Inserido na onda de retrocesso que assola o país, com especial ataque aos direitos da população, foi reservado um lugar de destaque à cultura no desmonte generalizado que se tem assistido. Exemplos não faltam: o fechamento da Exposição QueerMuseu em Porto Alegre, a recorrente tentativa de impedir a exibição da peça "O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu" e o desmanche da Fundação Piratini (RS) são três investidas significativas ocorridas recentemente.

Sem entrar no mérito acerca do retorno à censura, o desmanche da cultura tem como objetivos impor à população um incapacidade de crítica e análise da conjuntura e, portanto, o aniquilamento da resistência aos atos da administração pública. E se as formas de expressão estão sendo amordaçadas, o Patrimônio Cultural está sendo devastado no país.

Mas, apesar de ser um fenômeno nacional, o tema aqui tratado diz respeito a Porto Alegre e a matéria publicada em 19.07.2018, no Jornal Zero Hora, "Estudo, incentivo construtivo e desbloqueio de imóveis: o que prevê a Lei do Inventário proposta para Porto Alegre" expõe o processo de devastação.
Porto Alegre foi vanguarda e exemplo na regulamentação da preservação de seu acervo. Tinha, desde 2008, uma lei de proteção aos bens imóveis de relevância histórico-cultural. Nessa norma legal, foi regrado todo o processo para inclusão dos bens no chamado "Inventário do Patrimônio Cultural de Bens Imóveis do Município", com possibilidade de contestação pelo proprietário do imóvel e com aval da Equipe de Patrimônio Histórico e Cultural (EPAHC). Além disso, diferenciava edificações Inventariadas de Compatibilização e de Estruturação, sendo que as primeiras poderiam ser até demolidas, enquanto as últimas deveriam ser preservadas e já previa compensação aos proprietários dos bens inventariados através da Transferência de Potencial Construtivo.

No entanto, em janeiro de 2018, o Prefeito Nelson Marchezan sancionou a Lei Complementar 829, revogando a lei de inventário, deixando essa lacuna jurídica, para que uma nova normatização fosse criada(PLE 007/2018). Foi decisiva, para a revogação da lei, a pressão realizada por alguns proprietários de bens em Petrópolis, bairro porto-alegrense que tem uma amostra considerável bens culturais significativos e identitários da história da cidade. Não obstante a luta pela preservação do movimento Proteja Petrópolis levado por outros moradores do bairro, o assédio das construturas foi maior e colocou por terra o inventário realizado pela EPAHC, dando reforço ao golpe final no patrimônio cultural do município.
O discurso do procurador-geral adjunto, Nelson Marisco, na matéria jornalística citada, traz muitos elementos para que se conheça o que vai fundamentar a nova lei, bem como demonstra sua desconsideração com a questão do entorno:
Uma das mudanças mais significativas previstas pelo documento diz respeito aos chamados inventariados de compatibilização, prédios sem valor histórico vizinhos aos que são alvo de preservação (os chamados inventariados de estruturação, que não podem ser demolidos). Enquanto a legislação em vigor até o começo do ano autorizava sua demolição, mas restringia a altura da nova edificação à do patrimônio histórico do qual era vizinha, a nova regra permite que os imóveis construídos nessas áreas sejam maiores do que os protegidos. Segundo a prefeitura, a alteração é "uma questão de sustentabilidade":
— Entendemos que isso (a limitação) era efetivamente uma agressão ao direito de propriedade. Isso causa um impacto grande para os proprietários. A mudança foi pensando em uma forma de manter os inventariados que entendemos que seria possível — explica o procurador-geral adjunto.
Ou seja, primeiro há, no discurso, um retorno à patrimonialização dos direitos, como era antes da vigência de nossa Constituição Federal de 2008. Nesse sentido, o vereador Felipe Camozzato, do Partido NOVO, um dos proponentes da revogação, assim justifica a revogação da lei:
“a Lei Complementar nº 601 é uma afronta direta ao direito de propriedade. Inúmeras famílias foram afetadas pela Lei e é tarefa do legislativo dar o devido respeito a essa situação, por isso foi necessária revogação”¹.
Sabe-se que nenhum direito é absoluto, incluindo o de propriedade. Ele deve ser sopesado com os demais, devendo-se levar em conta que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos de nossa Constituição Cidadã, que assim foi chamada exatamente por priorizar o ser humano. A propriedade deve ter uma função social, que tanto pode ser de habitação quanto econômica, mas sempre respeitados os princípios constitucionais. 

Aqui, é preciso esclarecer que a lei que foi revogada estava fundamentada nesses princípios. Previa a preservação dos bens, regulava seu uso - não o impedia - e previa compensação para os proprietários. Ou seja a propriedade do bem era mantida, apenas seu uso tinha algumas limitações, uma vez que se trata de patrimônio cultural, direito previsto no Art. 215 da Constituição Federal. Isso é a aplicação da ponderação entre direitos, utilizando como instrumentos a razoabilidade e a proporcionalidade. 

E se o direito de propriedade sobrepõe-se ao direito ao meio ambiente, que segundo José Afonso da Silva é a  "interação do conjunto de elementos naturais, artificiais, e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas", há o desequilíbrio; jamais, a sustentabilidade.

O segundo ponto da fala do procurador-geral adjunto diz respeito ao aparente desconhecimento a respeito dos motivos pelos quais havia a regra de proibir construções em dimensões maiores do que aquelas dos bens de compatibilização.Sobre esses, a lei revogada assim tratava:
Art. 11. As edificações Inventariadas de Compatibilização poderão ser demolidas ou modificadas, por meio de Estudo de Viabilidade Urbanística (EVU), devendo a intervenção ou a edificação que a substituir observar as restrições necessárias à preservação cultural e histórica da edificação de Estruturação e do entorno a que estiver vinculado, bem como à paisagem urbana.[grifou-se]
Portanto, a limitação de novas construções buscava o equilíbrio paisagístico e a proteção do entorno do bem de estruturação. Indo ao extremo, sem esse tipo de proteção, podemos vir a ter algo semelhante ao que aconteceu em Balneário Camburiú (SC), com a capela construída na década de 1960 e que pertencia à associação luterana Wally Heidrich:


Fonte: https://wilsonroque.blogspot.com/2014/05/preservando-o-patrimonio-historico.html




A proteção do entorno já tinha previsão no Decreto-lei n.º 25/1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional:
Art. 18. Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibílidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a obra ou retirar o objéto, impondo-se nêste caso a multa de cincoenta por cento do valor do mesmo objéto.[grifou-se]
Portanto, o objetivo da lei revogada era, e deveria permanecer sendo, a proteção da ambiência e do próprio bem imaterial preservado. A alteração proposta pelo Município contraria essa determinação e nada tem de "sustentável". E, quando se fala em sustentabilidade, deve-se buscar a clássica definição da ONU, do relatório Brundland (1987): 
“Desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atenderem a suas necessidades e aspirações”. 
Aqui, em Porto Alegre, por exemplo, a arquitetura açoriana praticamente deixou de existir, pois as novas edificações lhe tomaram o lugar. E desse acervo, o que deixamos para às próximas gerações? Quase nada. Ou nada, em breve, se mantida a preponderância do direito à propriedade e o interesse econômico de grupos. E, ao que parece, a proposta da "nova" lei do inventário é apenas a face do retrocesso refletida no patrimônio cultural material de Porto Alegre.

¹Fonte: https://www.camejo.com.br/index.php/component/acymailing/listid-146/mailid-7455-camara-revoga-lei-do-inventario

terça-feira, 3 de abril de 2018

Atualizando a grande mídia sobre o caso Cais Mauá


Uma jornalista da grande mídia escreveu nota em sua coluna, em tom de reprovação, dizendo que “mesmo com as obras do Cais Mauá em andamento, a prefeitura de Porto Alegre segue recebendo pedidos de informações do Ministério Público e o Tribunal de Contas que deveriam ter sido feitos antes dos licenciamentos” *.
Foto: Muriell Krolikowski

Cabe algumas considerações acerca desta afirmação. A primeira é que se o Ministério Público e o Tribunal de Contas estão questionando e necessitam de informações, nada mais estão fazendo do que cumprir com sua obrigação de fiscalizar a lisura e a regularidade do projeto. Pouco importa em que fase se encontra a realização das obras: se houver dúvidas sobre atos que envolvam o patrimônio público, como é o caso, não há limitação de tempo para que sejam esclarecidas e, eventualmente, solucionados os problemas.
Segundo, engana-se a jornalista, que mais do que ninguém deveria buscar esclarecer os fatos, sobre a cronologia dos acontecimentos. As informações sobre o projeto e sobre o cumprimento do contrato de arrendamento assinado entre o Estado do RS e o consórcio Cais Mauá do Brasil vêm há muito sendo requeridas pelos órgãos citados e outros. Ocorre que, mesmo sem essas respostas, o Poder Público achou por bem levar a diante o projeto.
Não é à toa que existem quatro ações judiciais – três Ações Populares e uma Ação Civil Pública – questionando a regularidade no cumprimento do contrato e problemas relativos às leis que regulam a ocupação do espaço público na orla do Guaíba. Ou seja, o questionamento é anterior aos licenciamentos.
Quanto ao Ministério Público Estadual, a Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre abriu um inquérito civil em 2009, para averiguar possíveis danos ao patrimônio cultural em decorrência das obras do cais. O procedimento ainda está em curso, pois não foi afastada a possibilidade de haver danos irreversíveis. Logo, são pedidos de informação que foram feitos muito antes dos licenciamentos.
E isso também tem relação com o questionamento feito pelos órgãos públicos ao qual a jornalista se revolta: “fornecer parecer da SMURB a respeito da manutenção das visuais da Usina do Gasômetro desde a Rua da Praia, apresentando estudo de impacto visual posterior gerado pela travessia em desnível, incluindo o volume do próprio empreendimento (shopping)”.
O pedido de informações sobre o assunto também não é nenhuma inovação. A preocupação aqui assinalada é o impacto que o projeto trará na paisagem de Porto Alegre, justamente pelo fato de que o cais do porto é um espaço emblemático e de identificação da cidade. E um dos primeiros questionamentos feitos foi justamente sobre a modificação drástica que o projeto que foi escolhido traria ao nosso cartão postal, não só pelo Ministério Público, mas também pela população, através das manifestações dos movimentos sociais.
No mesmo sentido, em dezembro de 2016, o IPHAN publicou portaria com as diretrizes que deveriam ser observadas em relação ao entorno dos bens tombados pela União, com recomendações específicas sobre a área do cais. A Associação Amigos do Cais do Porto (AMACAIS) e o Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento do Rio Grande do Sul (IAB/RS) encaminharam ofício ao IPHAN questionando se essas diretrizes estavam sendo observadas, exatamente um ano antes da liberação do último licenciamento.
Quanto ao Tribunal de Contas do Estado, as inspeções especiais abertas, que analisam irregularidades encontradas, prosseguem há anos, sem que todas as repostas tenham sido dadas e as indicações feitas tenham sido cumpridas. Portanto, quem não está observando as etapas são o consórcio e o poder público, obstinados em executar um projeto que jamais dialogou com a cidade e sua população.
Coletivo A Cidade Que Queremos – Porto Alegre

* Fonte: Zero Hora. “Cais Mauá, uma novela sem fim”. Sábado e domingo. 31 de março e 1º de abril de 2018
Publicado originalmente no blog do Coletivo A Cidade Que Queremos, em 02/04/2018.

https://coletivocidadequequeremos.wordpress.com/2018/04/02/atualizando-a-grande-midia-sobre-o-caso-cais-maua/

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Sobre caranguejos e progresso


Olhando todo o percurso que o projeto do Cais Mauá teve até aqui e as mobilizações que o contestaram, o que chama a atenção é estreiteza de pensamento que o acompanha, especialmente daqueles que têm o poder de transformar a cidade. Já é uma constante ouvir que os que se opõem ao projeto são "caranguejos", pois o simples questionamento a um projeto ancorado no binômio shopping/torres comerciais é considerado contrário ao progresso.
Mas o que é esse progresso tão usado como defesa cega deste plano de negócios para o cais? Vamos pinçar algumas frases emblemáticas sobre o assunto:
"Qualquer tentativa de mudar alguma coisa, mesmo que para melhor, esbarra numa muralha de conservadorismo. Por acaso algum negócio hoje prospera sem estacionamento? Não quer ir de carro? Vai a pé, de ônibus ou de bicicleta". (Rosane de Oliveira, jornalista)
“Indo contra a continuidade do projeto estaremos regredindo no que tange o desenvolvimento da Capital. Se não aceitamos o progresso e não aceitarmos os shoppings centers, que movimenta o comércio, gera empregos e está sempre inovando, permaneceremos com o Cais desativado por anos” (Paulo Kruse, presidente do Sindilojas Porto Alegre). 
"Para a entidade que defende o interesse de um setor que emprega cerca de 100 mil pessoas na capital gaúcha e cidades da região metropolitana, barrar esse projeto representa um retrocesso ao desenvolvimento de Porto Alegre e à criação de novas frentes de empregos".(Felipe Vieira, jornalista, comentando a posição do Sindicato de Hospedagem e Alimentação de POA e Região).
Ou seja, o progresso e o desenvolvimento seriam alcançados sempre que fosse implantado um centro comercial, com um estacionamento bem amplo e com edifícios, para possibilitar a criação de muitas vagas de emprego. 
Vamos começas pelas vagas de estacionamento, com previsão de 4.000 na área do cais. Londres e Nova Iorque não podem ser consideradas cidades provincianas ou retrógradas. Mas, desde 2003, Londres implantou o pedágio urbano, restringindo o trânsito de veículos, incentivando o transporte coletivo e de bicicletas. Assim, além de descongestionar as vias, diminuiu a poluição na cidade. Recentemente, o valor do pedágio para carros mais poluentes foi aumentado. A ideia é ter uma cidade com mais qualidade de vida. Segue uma fala do prefeito de Londres, Sadiq Khan (out/2017):
"A cada ano mais de 9 mil londrinos morrem de forma prematura devido à má qualidade do ar, como as crianças da nossa cidade que têm os pulmões mal desenvolvidos e os adultos que sofrem de asma, demência e problemas cerebrais", explicou o prefeito à emissora "BBC".
Em 2009, Michael Bloomberg, ex-prefeito de Nova Iorque, fechou parte da Avenida Broadway para os carros e instalou praças temporárias com o objetivo de aumentar a segurança para os pedestres e diminuir o congestionamento de veículos. A medida foi implementada como um experimento e se tornou um sucesso, assim, em fevereiro de 2010, tornou-se permanente entre as avenidas 42 e 47.
© Snøhetta
Quem é "caranguejo"? Aquele que quer colocar em circulação cerca de mais 12.000 automóveis (estimativa baixa) no centro de Porto Alegre ou quem está trabalhando para restringir a entrada dos veículos na área central da cidade? 

Segundo ponto: a necessidade absoluta de colocar um shopping center na orla. Primeiro, os próprios armazéns poderiam ser recuperados e ter diferentes tipos de ocupação (não apenas "equipamentos culturais gratuitos ou lojinhas de artesanato para a população usufruir", entendimento de certa jornalista sobre a preferência dos "caranguejos"), independente de financiamento público, podendo perfeitamente ser fruto de uma parceria do poder público com o investimento privado.
Depois, o que temos ouvido falar sobre os shoppings centers? Segundo a Revista Exame:

 Foto de Seph Lawless
"20% a 25% dos shopping centers nos Estados Unidos devem fechar no espaço de 5 anos, de acordo com um relatório recente do banco Credit Suisse. Se confirmado, isso significaria o fechamento de 240 a 300 dos cerca de 1.200 shoppings existentes hoje no país". (matéria de junho/2017)

Já um site especializado em comercio eletrônico tem a seguinte opinião, na matéria "Os shopping Centers estão ameaçados de extinção?":
"Ou seja, já sabíamos que o comércio eletrônico viria pra ficar e que haveria, como realmente está havendo, crescimento continuo e longínquo nas vendas online, mas pensar que isso iria ameaçar a hegemonia dos shoppings centers e até mesmo mudar completamente alguns hábitos de consumo que duraram por décadas, demonstra o quão forte e consistente se tornou o comércio eletrônico em todo mundo." (jan/2016)
Por outro lado, e se fosse incentivada a economia criativa, apenas uma das possibilidades para além do binômio shopping/torres? Segundo  José Roberto Marques, do Portal IBC,
"A Economia Criativa tem sido considerada a grande estratégia de desenvolvimento do século XXI. Isso acontece porque ela oferece enormes oportunidades nessa área, além de um vasto campo da Cultura de Negócios, como inovar produtos e serviços, ampliar o mercado e fidelizar clientes. Tudo isso acontece por meio da incorporação de elementos culturais e criativos ao negócio".
Já para  Lala Deheinzelin, consultora com foco em Economia Criativa,
"A chamada 'Economia Criativa' é, segundo tendências mundiais, o grande motor do desenvolvimento no século XXI. Segundo a ONU é um setor que já é responsável por 10 % do PIB mundial. A UNCTAD (Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento) divulga que, entre 2000 e 2005, os produtos e serviços criativos mundiais cresceram a uma taxa média anual de 8,7%, o que significa duas vezes mais do que manufaturas e quatro vezes mais do que a indústria".(Blog Economia da Cultura)
Ela também leva em conta a questão (tão atual) da sustentabilidade:
"Uma vez que cultura, criatividade e conhecimento (matérias-primas da Economia Criativa) são os únicos recursos que não se esgotam, mas se renovam e multiplicam com o uso, são estratégicos para a sustentabilidade do planeta, de nossa espécie e, conseqüentemente, das empresas também. São como a galinha de ovos de ouro. Os países desenvolvidos já perceberam o enorme potencial deste setor e muitos fizeram da Economia Criativa uma questão de Estado".
Quem é "caranguejo"? Aquele que segue apostando em shopping centers ou quem quer investimentos inovadores, que busquem não apenas o desenvolvimento econômico, mas também a inclusão social e a sustentabilidade?

Por fim, sobre os empregos, muito do que foi falado sobre a economia criativa ou da cultura, já embasa o ponto de vista de quem se opõem ao projeto/modelo de negócio. Mas para além do comércio dentro dos limites do cais do porto, temos o comércio do centro de Porto Alegre, que resiste bravamente e tem se reinventado. Basta ver a vitalidade do nosso centenário Mercado Público, a animação dos bares de calçada e as lojas abertas ao calçamento tombadona Rua da Praia. 
Qual seria o impacto do shopping nestes empregos, que hoje dão vida ao centro histórico de Porto Alegre? Eventuais e transitórios empregos na construção do empreendimento não justificam as consequências neste ponto da cidade, que busca recuperação e tem um vasto e inestimável patrimônio histórico. 
Isso sem considerar que o centro da cidade, assim como o cais do porto, é nossa origem. E, como patrimônio histórico e cultural, também tem participação no desenvolvimento econômico e criação de empregos. O setor do turismo representa atualmente 10% do PIB mundial e aumenta uma taxa de 4.6%, de acordo com a dissertação de Luiziane Segala, que cita a professora mineira Maria Cristina Simão:
"O papel da preservação do patrimônio cultural nacional extrapola, hoje, os limites da história e da memória, uma vez que começa a cumprir um papel econômico e social. Assim, pesquisar sobre a preservação cultural e compreendê-la implica em desvendar não somente as características culturais, mas, sobretudo, em avaliar possibilidades de ampliar o leque de atividades econômicas dos núcleos urbanos possuidores de acervo cultural". 
Os empregos, portanto, não são atrelados exclusivamente ao comércio formal existente em shopping centers. Mas podem e devem estar inseridos em um contexto de sustentabilidade, preservação, inclusão e, sim, economia e desenvolvimento. A preservação de nosso cartão postal - o Cais do Porto - é a manutenção de nossa identidade, o que nos diferencia das demais cidades e que traz a curiosidade ao visitante.
Foto: Ricardo André Frantz 
Quem é "caranguejo"? Aquele que só enxerga potencial de geração de empregos num segmento específico ou quem, a exemplo de outros lugares do mundo, vê a perspectiva de conectar todos esses valores?

Portanto, quando ouço as mesmas frases em uníssono, defendendo um projeto antiquado, que não dialoga com a sociedade nem com o centro histórico, não posso acreditar que seja apenas desinformação. Talvez, o bicho, aqui, não seja o caranguejo, mas o tubarão.


Fontes:
https://gauchazh.clicrbs.com.br/opiniao/noticia/2015/09/rosane-de-oliveira-cais-maua-e-exemplo-do-jeito-gaucho-de-resistir-4851744.html
https://www.sindilojaspoa.com.br/imprensa/noticias/sindilojas-porto-alegre-reforca-o-apoio-ao-projeto-de-revitalizacao-do-cais-maua
http://felipevieira.com.br/site/tag/cais-maua/
https://g1.globo.com/carros/noticia/londres-implanta-pedagio-para-carros-mais-poluentes-no-centro.ghtml
https://www.archdaily.com.br/br/601289/pedestrianizacao-da-times-square-deve-ser-concluida-em-2016
http://eseller.com.br/blog/os-shopping-centers-estao-ameacados-de-extincao
http://www.ibccoaching.com.br/portal/como-aplicar-o-conceito-de-economia-criativa-como-estrategia-de-desenvolvimento/
http://economiadacultura.blogspot.com.br/2008/09/economia-criativa-estratgia-de.html
ftp://ftp.ufrn.br/pub/biblioteca/ext/bdtd/ValeriaSF_Parte2.pdf
SIMÃO, Maria Cristina Rocha. Preservação do patrimônio cultural em cidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Locomotiva da Ferrovia do Riacho: por onde anda?



A Ferrovia do Riacho foi construída com o objetivo principal de garantir o transporte de lixo do centro de Porto Alegre para a área próxima de onde hoje está a Fundação Iberê Camargo e ser despejado no Guaíba. Foi concluída em 1899 e, em 1910, começou a obra de prolongamento da ferrovia até a Pedra Redonda, já tendo em vista o transporte de passageiros. A Ferrovia do Riacho encerrou o transporte de passageiros na década de 1930 e terminou definitivamente com as atividades em 1941, quando a enchente que assolou a Capital destruiu parte da linha.
A ferrovia, portanto, teve papel fundamental na formação dos bairros da zona sul, havendo uma estação férrea na Pracinha da Tristeza (hoje a Praça Comendador Souza Gomes), por volta de 1920. A partir do resgate desta história, feita pelo arquiteto e pesquisador André Huyer, com a publicação de sua tese de mestrado, em 2012, a comunidade inciou a mobilização para trazer a locomotiva para Porto Alegre, com a intenção de colocá-la de volta na praça.
Resumidamente, a locomotiva esteve exposta no Parque da Redenção e, depois de sofrer com o vandalismo,  foi encaminhada ao Museu do Carvão, em Arroio dos Ratos. De lá, foi cedida ao município de Carlos Barbosa, que queria transformá-la em mais um atrativo turístico na cidade, mas acabou abandonada, a céu aberto, no pátio de uma transportadora, como é possível ver nas fotos, e onde permanece até hoje.

Em 2015, pessoas da comunidade e ligadas a essa demanda estiveram na sede do IPHAN, em Porto Alegre, para solicitar formalmente que a locomotiva fosse trazida para a capital. Junto, foi entregue um abaixo-assinado, confirmando esse pedido e feito o relato da situação, que apontava, entre outras coisas, a existência de um inquérito civil do Ministério Público Estadual, que posteriormente passou à esfera federal, exigindo providências da Prefeitura de Carlos Barbosa em relação ao abandono da máquina; a manifestação desse Município sobre seu desinteresse em continuar com o bem e a posição da então SMAM (Secretaria Municipal de Meio Ambiente), que já havia determinado um local na Praça Comendador Souza Gomes, quando da reforma dessa, para a implantação da locomotiva.
A superintendência regional do IPHAN, em  17/05/2016, redigiu um parecer, concordando com a transferência do bem, colocando-o sob a responsabilidade do Centro Comunitário de Desenvolvimento da Tristeza, Pedra Redonda, Vilas Conceição e Assunção (CCD). Foram solicitados documentos, que incluíam uma carta-compromisso e uma perspectiva de projeto para a restauração do bem. Em setembro de 2016, o patrimônio ferroviário, que incluía a locomotiva, que era municipal, ficou sob a responsabilidade do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). Ao mesmo tempo, iniciou-se um processo de negociação entre o CCD e o Município de Carlos Barbosa, para que esse arcasse com as despesas de transporte do bem para Porto Alegre.  Mas, mesmo com várias tentativas de diálogo, o envio da locomotiva não ocorreu, havendo a troca da administração municipal.
Em 23/05/2017, ocorreu uma reunião na sede da superintendência do IPHAN em Porto Alegre, com a presença de representantes desse órgão, do DNIT, do CCD e da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Neste encontro, todos concordaram com a vinda da locomotiva de volta ao seu local de origem, e, em 31/05/2016, o DNIT confirmou a possibilidade da doação da locomotiva ao Município de Porto Alegre, orientando que Prefeito Municipal de Porto Alegre formalizasse um pedido para aquele órgão. O CCD tentou por várias vezes entrar em contato com o prefeito, mas jamais conseguiu marcar uma audiência.
O quadro atual não pode ser pior: descaso da  Prefeitura Municipal de Carlos Barbosa, que se mantém impassível ante a visível deterioração do bem, embora esteja respondendo ao Ministério Público Federal, que apura, inclusive, responsabilidades criminais. A comunidade não consegue agendar uma conversa com o prefeito de Porto Alegre, município que já não tem mais a mesma estrutura de secretarias que havia anteriormente, o que dificulta o acesso ao projeto de revitalização da Praça Comendador Souza Gomes, endereço futuro da máquina. Mesmo o IPHAN não tem respondido ao pedido de nova reunião para tratar do assunto.
Agora, visitada em janeiro de 2018, viu-se que o estado da locomotiva é lamentável. É visível a corrosão da carcaça em muitos lugares, inclusive com amassamento de um dos lados da cabine, possivelmente pelo choque de um dos caminhões em manobra no local, além de pichações. 
Até quando o poder público vai deixar que se perca o patrimônio da população? A comunidade tem se mobilizado há anos, inclusive tomando para si uma responsabilidade extraordinária, mas sem a contrapartida de quem tem o poder de decisão. Será que vamos perder mais essa parte de nossa história?



    
      Provável choque de um caminhão em manobra


Pichações em sua parte frontal


Proximidade do caminhão do bem

Fonte da parte histórica: A Ferrovia do Riacho — Do Sanitarismo à Modernização de Porto Alegre, de André Huyer.
Fotos: Jacqueline Custódio