segunda-feira, 14 de junho de 2021

Cais Mauá: do patrimônio histórico ao cultural, do impalpável ao jurídico


   A expressão patrimônio cultural traz certa confusão quando é utilizada. Por conta do nosso processo histórico, de construção do país como nação, muito se falou em Patrimônio Histórico, e ainda se ouve frequentemente esta designação. Não é à toa que o órgão federal de proteção ao patrimônio cultural brasileiro chama-se Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). 
   A arquitetura foi utilizada como referência de identidade e as construções coloniais portuguesas, sua concretização. Assim, é comum relacionar patrimônio cultural com edificações, pois, por muitos anos, essas eram a forma mais evidente de expressão do patrimônio nacional. Mas, como no resto do mundo, esta percepção mudou. 
   Hoje, o patrimônio cultural está definido em nossa Constituição Federal, no art. 216: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. E nossa Carta Magna vai além, elencando as possibilidades de apresentação de nosso patrimônio. 
   As hipóteses previstas nos incisos subseqüentes indicam as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
   Como se vê, a expressão patrimônio cultural abarca aquilo que se vê, que se toca, e também o que é intangível. E por conta dessa ampliação, o tema deve ser tratado de maneira transdiciplinar, uma vez que diz respeito a um universo de possibilidades, envolvendo uma gama de profissionais, para além do consagrado saber dos arquitetos. 

Pórtico e armazéns tombados; foto Jacqueline Custódio

   Feitas essas considerações, podemos aplicá-las ao patrimônio cultural mais perto de nossa realidade e, atualmente, merecedor de atenção: nosso cais do porto. Por conta de um malfadado contrato de concessão, o cais amargou outros 10 anos de negligência e, agora, uma nova proposta está em gestação pelo Governo do Estado e que precisaria ser pensada nesse contexto patrimonial. 
   O Cais Mauá, cujas construções constituem a referência histórica da cidade, é um lugar que se adéqua totalmente ao conceito de patrimônio cultural. Quando pensamos no cais, nos vêm imediatamente o pórtico central, imponente estrutura de ferro e vidro, e os armazéns que formam um ziguezague com seus telhados. Visto assim, estamos considerando os componentes arquitetônicos dos prédios, patrimônio edificado ou material.  
Praça Edgar Schneider, foto de Isadora Neumann
   Se formos além, temos os espaços abertos que também são elementos indissociáveis das edificações. São as praças – sim, existem praças no cais – o calçamento, os vazios entre os prédios, o Guaíba. Podemos chamar estes elementos de entorno, que é um termo consagrado e protegido juridicamente, porque alterações nestes elementos podem modificar a percepção visual da edificação preservada ou adulterar a ideia do conjunto que lhe é característico.  Aprofundando um pouco mais a análise, este conjunto que compreende edificações, entorno e história do lugar vai dar estrutura a outro tipo de patrimônio, o paisagístico. Este bem patrimonial não se restringe à paisagem natural, na qual o Rio Guaíba constitui-se um componente fundamental, e à estética das construções antigas. Estamos diante do conceito de paisagem cultural, que agrega a natureza e o edificado, mas que se torna cultural, pela utilização do lugar, ou seja, através de sua dimensão social. 
   A paisagem cultural do Cais Mauá consolidou-se como identidade de Porto Alegre, imagem pela qual seus cidadãos se reconhecem e têm seu referencial territorial, um marco que distingue a cidade de qualquer outra. Como se vê a estética da paisagem constitui-se a identidade, como entende o filósofo italiano Paolo D’Angelo, por traduzir a especificidade de cada lugar. 
  Por mais etéreos que pareçam estes conceitos de paisagem cultural, entorno ou identidade estética, estamos diante de fatos jurídicos relevantes ao Direito. Fatos que podem e devem ser trabalhados em ações processuais, envolvendo não apenas as questões de proteção e preservação de patrimônio cultural, mas também na perspectiva de meio ambiente e do direito essencial à sadia qualidade de vida. E todo e qualquer projeto que diga respeito ao Cais Mauá deve respeitar estas normas ou estará sujeito ao escrutínio judicial, além, é claro, do juízo social.