Inserido na onda de retrocesso que assola o país, com especial ataque aos direitos da população, foi reservado um lugar de destaque à cultura no desmonte generalizado que se tem assistido. Exemplos não faltam: o fechamento da Exposição QueerMuseu em Porto Alegre, a recorrente tentativa de impedir a exibição da peça "O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu" e o desmanche da Fundação Piratini (RS) são três investidas significativas ocorridas recentemente.
Sem entrar no mérito acerca do retorno à censura, o desmanche da cultura tem como objetivos impor à população um incapacidade de crítica e análise da conjuntura e, portanto, o aniquilamento da resistência aos atos da administração pública. E se as formas de expressão estão sendo amordaçadas, o Patrimônio Cultural está sendo devastado no país.
Mas, apesar de ser um fenômeno nacional, o tema aqui tratado diz respeito a Porto Alegre e a matéria publicada em 19.07.2018, no Jornal Zero Hora, "Estudo, incentivo construtivo e desbloqueio de imóveis: o que prevê a Lei do Inventário proposta para Porto Alegre" expõe o processo de devastação.
Porto Alegre foi vanguarda e exemplo na regulamentação da preservação de seu acervo. Tinha, desde 2008, uma lei de proteção aos bens imóveis de relevância histórico-cultural. Nessa norma legal, foi regrado todo o processo para inclusão dos bens no chamado "Inventário do Patrimônio Cultural de Bens Imóveis do Município", com possibilidade de contestação pelo proprietário do imóvel e com aval da Equipe de Patrimônio Histórico e Cultural (EPAHC). Além disso, diferenciava edificações Inventariadas de Compatibilização e de Estruturação, sendo que as primeiras poderiam ser até demolidas, enquanto as últimas deveriam ser preservadas e já previa compensação aos proprietários dos bens inventariados através da Transferência de Potencial Construtivo.
No entanto, em janeiro de 2018, o Prefeito Nelson Marchezan sancionou a Lei Complementar 829, revogando a lei de inventário, deixando essa lacuna jurídica, para que uma nova normatização fosse criada(PLE 007/2018). Foi decisiva, para a revogação da lei, a pressão realizada por alguns proprietários de bens em Petrópolis, bairro porto-alegrense que tem uma amostra considerável bens culturais significativos e identitários da história da cidade. Não obstante a luta pela preservação do movimento Proteja Petrópolis levado por outros moradores do bairro, o assédio das construturas foi maior e colocou por terra o inventário realizado pela EPAHC, dando reforço ao golpe final no patrimônio cultural do município.
O discurso do procurador-geral adjunto, Nelson Marisco, na matéria jornalística citada, traz muitos elementos para que se conheça o que vai fundamentar a nova lei, bem como demonstra sua desconsideração com a questão do entorno:
Uma das mudanças mais significativas previstas pelo documento diz respeito aos chamados inventariados de compatibilização, prédios sem valor histórico vizinhos aos que são alvo de preservação (os chamados inventariados de estruturação, que não podem ser demolidos). Enquanto a legislação em vigor até o começo do ano autorizava sua demolição, mas restringia a altura da nova edificação à do patrimônio histórico do qual era vizinha, a nova regra permite que os imóveis construídos nessas áreas sejam maiores do que os protegidos. Segundo a prefeitura, a alteração é "uma questão de sustentabilidade":
— Entendemos que isso (a limitação) era efetivamente uma agressão ao direito de propriedade. Isso causa um impacto grande para os proprietários. A mudança foi pensando em uma forma de manter os inventariados que entendemos que seria possível — explica o procurador-geral adjunto.
Ou seja, primeiro há, no discurso, um retorno à patrimonialização dos direitos, como era antes da vigência de nossa Constituição Federal de 2008. Nesse sentido, o vereador Felipe Camozzato, do Partido NOVO, um dos proponentes da revogação, assim justifica a revogação da lei:
“a Lei Complementar nº 601 é uma afronta direta ao direito de propriedade. Inúmeras famílias foram afetadas pela Lei e é tarefa do legislativo dar o devido respeito a essa situação, por isso foi necessária revogação”¹.
Sabe-se que nenhum direito é absoluto, incluindo o de propriedade. Ele deve ser sopesado com os demais, devendo-se levar em conta que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos de nossa Constituição Cidadã, que assim foi chamada exatamente por priorizar o ser humano. A propriedade deve ter uma função social, que tanto pode ser de habitação quanto econômica, mas sempre respeitados os princípios constitucionais.
Aqui, é preciso esclarecer que a lei que foi revogada estava fundamentada nesses princípios. Previa a preservação dos bens, regulava seu uso - não o impedia - e previa compensação para os proprietários. Ou seja a propriedade do bem era mantida, apenas seu uso tinha algumas limitações, uma vez que se trata de patrimônio cultural, direito previsto no Art. 215 da Constituição Federal. Isso é a aplicação da ponderação entre direitos, utilizando como instrumentos a razoabilidade e a proporcionalidade.
E se o direito de propriedade sobrepõe-se ao direito ao meio ambiente, que segundo José Afonso da Silva é a "interação do conjunto de elementos naturais, artificiais, e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas", há o desequilíbrio; jamais, a sustentabilidade.
O segundo ponto da fala do procurador-geral adjunto diz respeito ao aparente desconhecimento a respeito dos motivos pelos quais havia a regra de proibir construções em dimensões maiores do que aquelas dos bens de compatibilização.Sobre esses, a lei revogada assim tratava:
Art. 11. As edificações Inventariadas de Compatibilização poderão ser demolidas ou modificadas, por meio de Estudo de Viabilidade Urbanística (EVU), devendo a intervenção ou a edificação que a substituir observar as restrições necessárias à preservação cultural e histórica da edificação de Estruturação e do entorno a que estiver vinculado, bem como à paisagem urbana.[grifou-se]Portanto, a limitação de novas construções buscava o equilíbrio paisagístico e a proteção do entorno do bem de estruturação. Indo ao extremo, sem esse tipo de proteção, podemos vir a ter algo semelhante ao que aconteceu em Balneário Camburiú (SC), com a capela construída na década de 1960 e que pertencia à associação luterana Wally Heidrich:
Fonte: https://wilsonroque.blogspot.com/2014/05/preservando-o-patrimonio-historico.html |
A proteção do entorno já tinha previsão no Decreto-lei n.º 25/1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional:
Art. 18. Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibílidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a obra ou retirar o objéto, impondo-se nêste caso a multa de cincoenta por cento do valor do mesmo objéto.[grifou-se]
Portanto, o objetivo da lei revogada era, e deveria permanecer sendo, a proteção da ambiência e do próprio bem imaterial preservado. A alteração proposta pelo Município contraria essa determinação e nada tem de "sustentável". E, quando se fala em sustentabilidade, deve-se buscar a clássica definição da ONU, do relatório Brundland (1987):
“Desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atenderem a suas necessidades e aspirações”.
Aqui, em Porto Alegre, por exemplo, a arquitetura açoriana praticamente deixou de existir, pois as novas edificações lhe tomaram o lugar. E desse acervo, o que deixamos para às próximas gerações? Quase nada. Ou nada, em breve, se mantida a preponderância do direito à propriedade e o interesse econômico de grupos. E, ao que parece, a proposta da "nova" lei do inventário é apenas a face do retrocesso refletida no patrimônio cultural material de Porto Alegre.
¹Fonte: https://www.camejo.com.br/index.php/component/acymailing/listid-146/mailid-7455-camara-revoga-lei-do-inventario
¹Fonte: https://www.camejo.com.br/index.php/component/acymailing/listid-146/mailid-7455-camara-revoga-lei-do-inventario
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