segunda-feira, 14 de junho de 2021

Cais Mauá: do patrimônio histórico ao cultural, do impalpável ao jurídico


   A expressão patrimônio cultural traz certa confusão quando é utilizada. Por conta do nosso processo histórico, de construção do país como nação, muito se falou em Patrimônio Histórico, e ainda se ouve frequentemente esta designação. Não é à toa que o órgão federal de proteção ao patrimônio cultural brasileiro chama-se Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). 
   A arquitetura foi utilizada como referência de identidade e as construções coloniais portuguesas, sua concretização. Assim, é comum relacionar patrimônio cultural com edificações, pois, por muitos anos, essas eram a forma mais evidente de expressão do patrimônio nacional. Mas, como no resto do mundo, esta percepção mudou. 
   Hoje, o patrimônio cultural está definido em nossa Constituição Federal, no art. 216: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. E nossa Carta Magna vai além, elencando as possibilidades de apresentação de nosso patrimônio. 
   As hipóteses previstas nos incisos subseqüentes indicam as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
   Como se vê, a expressão patrimônio cultural abarca aquilo que se vê, que se toca, e também o que é intangível. E por conta dessa ampliação, o tema deve ser tratado de maneira transdiciplinar, uma vez que diz respeito a um universo de possibilidades, envolvendo uma gama de profissionais, para além do consagrado saber dos arquitetos. 

Pórtico e armazéns tombados; foto Jacqueline Custódio

   Feitas essas considerações, podemos aplicá-las ao patrimônio cultural mais perto de nossa realidade e, atualmente, merecedor de atenção: nosso cais do porto. Por conta de um malfadado contrato de concessão, o cais amargou outros 10 anos de negligência e, agora, uma nova proposta está em gestação pelo Governo do Estado e que precisaria ser pensada nesse contexto patrimonial. 
   O Cais Mauá, cujas construções constituem a referência histórica da cidade, é um lugar que se adéqua totalmente ao conceito de patrimônio cultural. Quando pensamos no cais, nos vêm imediatamente o pórtico central, imponente estrutura de ferro e vidro, e os armazéns que formam um ziguezague com seus telhados. Visto assim, estamos considerando os componentes arquitetônicos dos prédios, patrimônio edificado ou material.  
Praça Edgar Schneider, foto de Isadora Neumann
   Se formos além, temos os espaços abertos que também são elementos indissociáveis das edificações. São as praças – sim, existem praças no cais – o calçamento, os vazios entre os prédios, o Guaíba. Podemos chamar estes elementos de entorno, que é um termo consagrado e protegido juridicamente, porque alterações nestes elementos podem modificar a percepção visual da edificação preservada ou adulterar a ideia do conjunto que lhe é característico.  Aprofundando um pouco mais a análise, este conjunto que compreende edificações, entorno e história do lugar vai dar estrutura a outro tipo de patrimônio, o paisagístico. Este bem patrimonial não se restringe à paisagem natural, na qual o Rio Guaíba constitui-se um componente fundamental, e à estética das construções antigas. Estamos diante do conceito de paisagem cultural, que agrega a natureza e o edificado, mas que se torna cultural, pela utilização do lugar, ou seja, através de sua dimensão social. 
   A paisagem cultural do Cais Mauá consolidou-se como identidade de Porto Alegre, imagem pela qual seus cidadãos se reconhecem e têm seu referencial territorial, um marco que distingue a cidade de qualquer outra. Como se vê a estética da paisagem constitui-se a identidade, como entende o filósofo italiano Paolo D’Angelo, por traduzir a especificidade de cada lugar. 
  Por mais etéreos que pareçam estes conceitos de paisagem cultural, entorno ou identidade estética, estamos diante de fatos jurídicos relevantes ao Direito. Fatos que podem e devem ser trabalhados em ações processuais, envolvendo não apenas as questões de proteção e preservação de patrimônio cultural, mas também na perspectiva de meio ambiente e do direito essencial à sadia qualidade de vida. E todo e qualquer projeto que diga respeito ao Cais Mauá deve respeitar estas normas ou estará sujeito ao escrutínio judicial, além, é claro, do juízo social.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Um novo cais é possível

A história do cais do porto confunde-se com a história da cidade, pelo menos a da Porto Alegre tal qual como conhecemos hoje. Era 1833 e a urbe já clamava por rampas, trapiches, ancoradouros. No entanto, como uma maldição que lhe persegue, o primeiro trecho do cais ficou pronto em 1913 e o pórtico central, em 1922.

O tempo passou, a cidade cresceu e o trecho que recebeu a denominação de Cais Mauá começou a perder sua função portuária em meados dos anos 1980. Desde então, aquele espaço privilegiado procura uma integração com a cidade e a cada projeto que é proposto para o lugar, menor parece esta possibilidade.

Enterrado e judicializado o mais recente projeto de revitalização e plano de negócios para o cais (2010/2019), a proposta “tampão” é uma ocupação parcial denominada Embarcadero, ocupando o Armazém A7 e seu entorno. Mas o plano maior e que diz respeito a toda extensão do cais é mais lesivo e envolve a venda de lotes e a possibilidade de construção de outras edificações, para tornar mais atrativo aos investidores: o Projeto de Estruturação Imobiliária de revitalização do Cais Mauá, em Porto Alegre – RS, de propriedade do Governo do estado do Rio Grande do Sul.

Foto: André Ávila (ZH) - Embarcadero

A população mais uma vez é afastada de qualquer tomada de decisão sobre algo que lhe muito significativo. Não se trata apenas de recusa a uma atitude propositiva, na qual o Governo do Estado atuasse de forma a ouvir a quem tem obrigação constitucional de servir. Ele também não possibilita o diálogo a quem o busca através de movimentos sociais. Assim, invibializa a gestão democrática, impactando no direito do cidadão à cidade, como determina o Estatuto da Cidade.            

E este é um obstáculo em todos os sentidos. A elaboração de um projeto que vai alterar a dinâmica do centro de Porto Alegre tem que considerar o interesse público e não simplesmente partir da perspectiva de um plano de negócios, ainda que o local tenha que ser economicamente sustentável. Mas, os planos do governador Eduardo Leite vão além. Se antes se tratava de uma concessão à iniciativa privada, por até 50 anos, agora a entrega será, em definitivo, para a especulação imobiliária. Porto Alegre perderá um patrimônio que, mais do que público, é um patrimônio cultural inestimável.

Se a Porto Alegre fosse administrada para as pessoas, uma proposta para o cais consideraria os limites com o Lago Guaíba e todos os ônus e bônus que são decorrência desta circunstância. Ali, temos a beleza da contemplação e a reconexão com a natureza em pleno centro da cidade; mas temos também uma área inundável, cuja ocorrência traumatizante para a cidade foi a enchente de 1941. Estas características do local devem ser o ponto de partida para se pensar uma abordagem de requalificação do cais.

Qualquer edificação na área que está localizada entre a Usina do Gasômetro, os armazéns e o “muro da Mauá” é contrária à vocação do lugar e rompe com a proposta urbanística que o conecta à Praça Júlio Mesquita e ao “esquecido” Corredor Parque do Gasômetro. Também é importante lembrar a existência de várias leis que proíbem a construção em áreas inundáveis, entre elas, o Plano Diretor de Porto Alegre e o Código Estadual do Meio Ambiente.

Se o interesse público fosse respeitado, outra característica do Cais Mauá constituir-se-ia em diretriz de qualquer projeto para o local. Grande parte da sua estrutura é tombada e isto significa que não pode ser destruída, pois é patrimônio cultural, não apenas do Rio Grande do Sul, mas nacional. Seu maravilhoso pórtico e os armazéns que o ladeiam, restaurados com verbas do projeto Monumenta, têm proteção nacional. E os demais armazéns, à exceção do denominado Armazém A7, que é inventariado, são tombados pelo município.

E não apenas as edificações têm proteção. Estão incluídos o calçamento, composto pelos trilhos dos guindastes e os pisos de paralelepípedos, e o entorno destes bens culturais. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) elaborou regras para a salvaguarda do espaço que circunda todo o cais, de forma que se mantenha íntegra a paisagem característica do lugar e, naturalmente, a própria imagem da cidade.

Se o princípio da legalidade tivesse sido observado, talvez não assistíssemos aos mais de 10 anos de descaso e falta de cuidados com os prédios que compõem o conjunto Cais Mauá, protagonizados pelo consórcio que havia ganhado o edital de concorrência para revitalização, com a conivência do Governo do Estado. Hoje eles estão em péssimas condições e um dos mais urgentes desafios é recuperar, dentro das normas e preceitos internacionais de restauração de bens culturais, o conjunto que se constitui parte importante da identidade de Porto Alegre.

Entretanto, vale destacar que, ainda que protegida, a estrutura dos armazéns permite um uso bastante amplo, do ponto de vista comercial e cultural. Adaptando estas estruturas, é possível o desenvolvimento de uma vasta gama de negócios. Os mais de três mil metros de extensão do cais poderiam ser divididos em setores, contemplando todos os gostos e bolsos. Se a democratização de acesso fosse um critério observado pela administração pública, seria possível acolher desde restaurantes de alta gastronomia a botecos, para uma cerveja ao pôr do sol. E quem quisesse apenas “matear” e “jogar conversa fora”, também teria lugar para contemplação sem custos.

Lamentavelmente, Eduardo Leite optou por desconsiderar o interesse público, a participação dos cidadãos e a riqueza que é o nosso patrimônio cultural. Como num episódio de ataque de predadores a um animal doente, ontem foram abertas as inscrições para consultorias de “estudos de inteligência de mercado e de vocação imobiliária”, visando posterior venda de lotes do cais.

 Foto: Guilherme Santos/Sul21 - Audiência Pública

Só nos resta voltar ao campo de batalha, aumentar o número nas trincheiras e seguir lutando, na pretensão de que Porto Alegre tenha um cais democrático, acessível, cultural e sustentável, num mundo novo que, sigo acreditando, é possível. 





Este texto foi publicado originalmente no Jornal Matinal, em 20/11/2020 (acesse aqui)

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Porque o Cais Embarcadero é uma cortina de fumaça


Há muitos dias, estamos sendo bombardeados pela chamada grande mídia com a notícia de que, em setembro, será inaugurado o “Marco Zero” do projeto de revitalização do Cais Mauá, que leva o nome de Cais Embarcadero. Com pompa e circunstância, e direito a mimos caros anexados aos convites, foi realizado um evento no dia 22 de abril, que contou com a presença do prefeito e de vereadores, além do público-alvo, investidores e comunicadores.
Foto: Fabiano do Amaral (Site Correio do Povo, 22/04/2019)

Muita festa e confete, sempre com o propósito de passar a imagem de que alguma coisa está em andamento no local em que já deveria estar em obras, pelo menos desde dezembro de 2017, quando o consórcio de empresas que é responsável pela execução do projeto recebeu a última licença, a de instalação. Mas nada ocorreu até agora. E por quê?
Diferente de tudo o que é dito pelo consórcio, e amplamente divulgado pela imprensa, a culpa não é da burocracia, nem da sociedade civil. A responsabilidade é exclusiva do grupo que assinou, em 2010, um contrato de arrendamento com o Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Naquele contrato, assim como no edital de licitação, há uma cláusula cujo objetivo é assegurar a execução do projeto. O grupo que ganhasse a licitação deveria apresentar uma carta de capacidade financeira de R$ 400 milhões.
Esta garantia jamais foi apresentada, fato que vem contando com a anuência de vários gestores públicos, contrariando o princípio administrativo da supremacia do interesse público. A captação de recursos foi proposta a partir de investimentos em fundos de pensão, tendo sido constituído o Fundo de Investimento em Participações Cais Mauá (FIP Cais Mauá). Muito dinheiro foi investido neste fundo, mas os recursos jamais foram aplicados nas obras.
Na Siqueira Campos, um dos endereços que tiveram 
busca da Polícia Federal nesta manhã

Foto: Ronaldo Bernardi / Agência RBS (20/04/2018)

Por conta disso, a Polícia Federal deflagrou a operação Gatekeeper, que investiga – ainda está em atividade – o desvio de recursos, tendo feito apreensão de bens de pessoas ligadas à administração do consórcio Cais Mauá do Brasil S.A., naquela ocasião. Em Palmas (TO), existe uma CPI para apurar o desparecimento de R$ 30 milhões, sendo que o atual gestor do consórcio, Eduardo Luzardo da Silva, já foi chamado a dar esclarecimentos naquela cidade.
Ou seja, não há dinheiro, nem credibilidade para o projeto. E quem diz isso? Luiz Felipe Terra Favieri, da LAD Capital, atual empresa responsável pela captação de recursos:O Cais vem de um estresse muito grande. Assumimos, implementamos um diagnóstico e verificamos falhas como falta de liquidez, de credibilidade e necessidade de ajustes contratuais” (site Radio Guaíba, 22/03/2019).
Frente o adiamento interminável do início das obras, da incapacidade financeira e da falta de credibilidade no mercado, o atual governador, Eduardo Leite, constituiu um grupo de trabalho para analisar o caso. Em 08/04/2019, o grupo reuniu-se para apresentar suas conclusões, que apontavam para que o contrato de arrendamento fosse rescindido, por descumprimento de cláusulas.
Entre os problemas citados, está uma dívida de cerca de R$ 6 milhões para com o Estado, perda de prazo para o licenciamento ambiental e a falta e descumprimento da cláusula que obriga o reparo de danos e avarias aos armazéns. Além disso, um parecer emitido pela Procuradoria Geral do Estado considera que o consórcio perdeu o direito a reajustar o contrato.
Foto: Itamar Aguiar (Site do Jornal do Comércio, 12/04/2019)
Então, o Cais Embarcadero é um paliativo, para agradar à população, que acredita que terá acesso ao cais, e uma tentativa de demonstrar que algo está sendo executado. Mas o que está sendo apresentado não consta do projeto inicial, que foi resultado de um edital e definido entre as partes, servindo de chamariz para eventuais interessados. Aliás, outra irregularidade. 


Foto: Katia Suman, 16/10/2017
Sua execução não resolve os problemas citados. E sem entrar no mérito da qualidade do que é proposto de forma emergencial para aquela área, como ficarão os armazéns, que estão sofrendo um processo franco de degradação? Lembrando que a primeira etapa da revitalização seria a restauração dos armazéns, cujo projeto de restauro já havia sido aprovado pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico (IPHAN), além do já citado dever de manutenção e conservação daqueles bens tombados. 
Foto: Jefferson Botega (site GaúchaZH, 22/11/2017)

Somado a esse fato, está em curso um inquérito civil na Promotoria de Defesa do Meio Ambiente (Ministério Público Estadual), referente ao bens tombados, uma Inspeção Especial no Tribunal de Contas do Estado e o Ministério Público de Contas também aponta o descumprimento contratual. As irregularidades são evidentes. Há 4 ações judiciais questionando a proposta de revitalização, sendo que 2 delas pedem a rescisão do contrato por descumprimento de cláusulas. Assim, resta a pergunta: os administradores públicos e representantes do legislativo não temem ser responsabilizados por este dano ao patrimônio público e por improbidade administrativa?


terça-feira, 9 de abril de 2019

HONESTIDADE PÚBLICA

Transcrevemos abaixo a resposta do Prof. Dr. Francisco Marshall ao texto do jornalista Paulo Germano, na Zero Hora de hoje, cujo título é "A desonestidade da esquerda sobre a concessão de parques e praças à iniciativa privada em Porto Alegre":

Meu caro Paulo Germano, tu sabes o quanto te admiro, mas devo te dizer que fiquei bastante desencantado com o título dado a esta matéria de tua autoria, e o tratamento dado a assunto de interesse público. Situar temas relevantes em debate como se fossem apenas enfrentamento esquerda x direita é tudo o que não precisamos, sempre, mas hoje mais que nunca, e é também uma fuga improdutiva da objetividade da discussão. Esta estigmatização é uma das principais causas do atraso político e cultural hoje vigente. Lastimável formulares deste modo uma discussão pública.

Quanto ao projeto proposto pelo prefeito Marchezan Jr., merece, sim, discussão e análise ponderada. Seria uma catástrofe impor medida tão drástica sem exame profundo. São sempre suspeitos e geralmente culpados os que querem açodar com urgências ao exame e ponderação de discussões do interesse público.
Parques e praças têm em sua natureza o caráter público, o que permite abertura a todos e desfrute coletivo. São espaços de encontros, trocas, fruição livre, vida compartilhada. É dever da administração não apenas zelar por estas áreas, como implantar novos parques e praças, de acordo com a dinâmica da cidade. Porto Alegre precisa de mais parques.
A alienação do caráter público é uma grave ofensa à fronteira entre público e privado que marca o Estado moderno (desde os gregos, reafirmada no Iluminismo). O discurso da eficiência, gasto de tanto uso nas mãos liberais, esconde outro problema, a qualidade de gestão, e revela outros cacoetes: a ganância privada sobre o patrimônio público, a intrusão de finalidades indevidas (anúncios, restrições, desvios funcionais - quando algo voltado ao lazer ou à cultura passa a ser regido pela busca do lucro) na esfera pública. A privatização não é solução mágica e é imprópria para muitos bens e serviços públicos.

Cumpre lembrar que Porto Alegre vive o tormento de ser vítima de uma fraude exemplar, a falcatrua do Cais Mauá, em que relações mais que obscuras entre empreendedor privado e autoridades públicas produzem esta vergonha máxima. Nada realizam, não possuem capital, desdenham o edital, postergam, montam palanques para anunciar obras que nunca ocorrem, nunca fazem nada, envolvem-se em delitos aqui e em todo o país, descuidam da conservação do patrimônio (exigida em edital), e depois de 9 anos enrolando (não a mim, à AMACAIS e a quem conhece o caso), propõem um puxadinho (estacionamento e "beach club") em tudo discordante dos termos contratados em edital. Diante deste exemplo monumental, que esperar de contratos similares, com este tipo de autoridades e de empreendedores (ambos de araque)? E que dizer da imprensa, que deveria vigiar e denunciar, e segue boboca, aplaudindo uma fraude monumental? Com quem vamos defender a esfera pública? Com as incorporadoras e seus lacaios, edis e funcionários cativos, jornalistas com bandeirinhas na mão?
Você pode me taxar de esquerda e pôr nova pá de cal no debate. Afinal, sou filiado ao PSOL (com orgulho), firme apoiador de Fernanda Melchionna, admirador de Marcelo Sgarbossa e sempre pronto a argumentar em favor de uma pólis que ora aparece como cidade, e muito mal administrada, mal cuidada. Abafar o debate será ótimo para quem quer impor suas metas sem ponderação. Inobstante, os fatos objetivos e os argumentos continuarão ali, aqui, por tudo, vivos. Leia-se o que diz Gerson Almeida, por exemplo, que nada tem de desonesto e infantilóide (!), como afirmaste ofensivamente, Paulo Germano. E quem tem a mente no centro que importa - a ágora - seguirá trabalhando e tentando construir uma cidade melhor para todos, na esfera pública.

A coluna do jornalista pode ser acessada em https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/paulo-germano/noticia/2019/04/a-desonestidade-da-esquerda-sobre-a-concessao-de-parques-e-pracas-a-iniciativa-privada-em-porto-alegre-cju93hz3600c001rtdlcd14gv.html?fbclid=IwAR0N8MFNWlj8wAK2B5a58H2whIWiMEP0ccSixfSWWNMZnf_KWpZr1PJWSUk

segunda-feira, 25 de março de 2019

O “Laçador” é mais do que monumento


Já faz algum tempo, está em curso uma campanha propondo a retirada do monumento do Laçador do lugar em que hoje está localizado. A justificativa aparente é de que ele estaria "escondido" da população e, devido a sua importância, deveria ser realocado para um lugar mais central, como a orla ou o Parque da Redenção. Contudo, creio que são necessárias algumas reflexões acerca dessa proposta.

A obra é de autoria de Antônio Caringi e foi a vencedora de um concurso de esculturas, cujo objetivo era exibi-la no estande de nosso estado, na Exposição-Feira Internacional do Parque do Ibirapuera, em 1954. Posteriormente, seria doada à cidade de São Paulo, em comemoração a seus 400 anos.


Porém, a peça retornou ao estado e foi adquirida pelo nosso Município, sendo, então, fundida em bronze para instalação em logradouro público, originalmente, no Largo do Bombeiro. E a escolha do local foi justamente a entrada da cidade, para dar as boas-vindas aos que chegavam, tornando-se símbolo de Porto Alegre.

Em 2007, o monumento foi transferido para seu sítio atual, para dar espaço à construção de um viaduto. O novo lugar foi escolhido dentro da perspectiva de proximidade ao local original, justamente para manter o significado que acabou sendo incorporado ao monumento. Para facilitar a visitação de turistas e nativos, foi projetado um espaço com estacionamento e outros recantos.

Contudo, o deslocamento da estátua, ampliado por problemas de conservação daquele sítio, acabou por retirar da figura do Laçador parte de sua força identitária. Agora, uma nova alteração está sendo proposta, mais uma vez desconsiderando a ligação entre o monumento, seu simbolismo e diretrizes das cartas patrimoniais internacionais, que contemplam, inclusive, o conceito de patrimônio ambiental urbano.

Se foi traumática a retirada do monumento de seu sítio original, não menos impactante será sua transferência para um local absolutamente alheio ao contexto no qual a estátua foi reconhecida como ícone de Porto Alegre. Uma vez que está estabelecido na entrada da cidade, ali deveria permanecer, sem que com isso representasse um distanciamento da população.
 
Foto: Felipe Rech Meneguzzi
Existe uma mobilização da administração municipal e da iniciativa privada em promover o 4º Distrito como polo cultural e econômico. A revitalização proposta para a região, que envolve o bairro onde está localizado o Laçador, deveria prever uma conexão com o local nestas ações. Um exemplo simples seria a colocação de um roteiro da Linha Turística para aquela região, contemplando uma visita ao sítio do monumento.

É importante frisar que novos conceitos sobre o patrimônio cultural apontam para a conservação integrada, recomendada pelo Manifesto de Amsterdã. A preservação dos bens culturais deve estar em consonância com o Plano Diretor, pois a cidade deve ser considerada a partir de sua diversidade sócio-cultural e de sua natureza dinâmica.
Foto: Paulo RS Menezes
Assim, pelo valor inestimável que tem o monumento do Laçador para Porto Alegre, qualquer proposta de retirá-lo do lugar em que hoje se encontra deve, necessariamente, considerar que, mais do que um patrimônio cultural tombado, a estátua hoje tem um valor simbólico, cuja origem está no papel de acolhedor aos visitantes de nossa cidade.



Foto Antiga: http://prati.com.br/porto-alegre/porto-alegre-monumento-ao-lacador-1950.html

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Porto Alegre dos bondes!

Uma das últimas lembranças que tenho com meu avô, quando ele ainda estava bem de saúde, foi pegar um bonde, cujo destino não tenho o registro. Já havia sido noticiado o fim dos veículos esquisitos, que andavam agarrados aos trilhos e a fios elétricos, e aquelas seriam as suas últimas viagens. Depois, com o tempo, as marcas dos trilhos nas ruas foram desaparecendo, cobertas pelo asfalto, e a garagem da Carris, que ficava perto do Parque da Redenção, foi demolida, para dar lugar a avenida, celebrando os automóveis, novos astros de uma era. 
Foto: http://www.carris.com.br/default.php?p_secao=71
Minhas memórias confundem-se com as memórias de Porto Alegre. E assim como para mim, a lembrança dos bondes são os registros de uma época em que a cidade ansiava pela modernidade, vislumbrada pela vinda dos veículos a diesel e gasolina. Mas os bondes transformaram-se em marcos referenciais da vida da população até 1970, quando o último bonde parou.
Fonte https://www.facebook.com/pg/atelierdobonde/photos/?ref=page_internal

A medida em que os anos foram passando, aqueles veículos sem uso, foram sendo sucateados, desmanchados e esquecidos. Alguns tiveram uma vida mais longa, ocupando local de destaque em escolas da capital. Mas um, em especial, teve brilho ainda maior, agregando criatividade e memória: o bonde da Tristeza. Por anos, serviu como palco da arte e da cultura, do fazer artístico, da fruição, do encontro das pessoas com a sensibilidade na zona sul da cidade.
Um dia, teve que sair da sua já tradicional morada, correndo sério risco de se perder, como os demais. Angela Ponsi e sua mãe, Zilka, que já o tinham salvo uma vez, persistem em sua proteção, dando-lhe novo destino e buscando a sua merecida recuperação.



Angela é a autora do projeto de restauração do bonde, que deverá acontecer com recursos da Lei Rouanet, de incentivo à cultura. É um projeto muito relevante para a cidade, tendo em vista que este é um dos últimos remanescentes da frota e que se encontra em razoável estado de conservação. Ele representa nossa memória viva e é fonte de referência, para os que vieram e virão depois de nós.
Porto Alegre precisa se reconhecer através daquilo que lhe representa: somos a Usina do Gasômetro, somos o Cais Mauá e o Guaíba, somos o Parque da Redenção. Esta é a nossa identidade. E os bondes eram personagens importantes da história desta cidade, que não precisa e nem pode deixar de ter a sua personalidade, para alcançar o desenvolvimento tão almejado.
Assim, a notícia do projeto de restauração do Bonde da Tristeza é um grande alento e alegria não só para a zona sul, mas para nossa cidade, tão carente de auto-estima. E esse bonde é um destes referenciais que nos tocam a alma e nos ajudam a conhecer nossa trajetória. Vida longa ao bonde!!!!!!

Outras matérias: 
http://www.meubairropoa.com/zona-sul/tristeza/atelier-do-bonde-elabora-projeto-de-restauracao-de-locomotiva/?fbclid=IwAR0kbyZ3OkTH1jMhKcgK-Yx_6hn2jGeLc8PPy2xduSqfMoo_pIJ7ZyYokg0
https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=2256628137916012&id=349960648405663

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Buscamos Herederos!

Nos dias 23 e 24 de outubro, na cidade de Buenos Aires (Argentina), ocorreu o evento promovido pela ONG Basta de Demoler, do qual participaram representantes dos países da Bacia do Prata: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Foi o 2º Encuentro de Gestón de Patrimonio Arquitectónico y Urbano Cuenca del Plata, cujo tema foi "Buscamos Herederos".

O tema proposto, a busca por sucessores, tem sentido, pois a luta pela preservação de nossa história e memória parece estar se afastando do cotidiano das novas gerações, pelos mais variados motivos. Estavam presentes neste encontro pessoas que estão nesta batalha há muitos anos e que têm enfrentado todos os tipos de dificuldades que encontramos na defesa de nossos bens, em especial, nosso patrimônio material.
Ao longo das falas, ficou muito evidente que temos obstáculos comuns, embora possamos estar em diferentes níveis de desenvolvimento de políticas patrimoniais protetivas. Um dos painéis discutiu questões jurídicas dos diversos países, onde se viu que existem leis de proteção do patrimônio, sendo que algumas estão sendo alteradas, como é o caso do Paraguai. Já no Uruguai, existe uma proposta de utilização de critérios objetivos e numéricos, para determinar benefícios para os proprietários de bens a serem protegidos.
Palacio Roccatagliata (Foto: Maxi Failla)
Contudo, chama a atenção que, embora exista legislação protetiva em todos os países, ela tem sido sistematicamente ignorada, quando é necessária sua aplicação contundente. E disso decorre um enfraquecimento da atuação cidadã, que precisa sempre ter fundamentos legais para justificar suas reivindicações. Mas, aparentemente, o inverso não parece ser exigido, chegando ao extremo da ONG que organizou o evento estar respondendo na justiça, por ter exercido seu direito de reivindicar a proteção de bens históricos, como foi o caso Palacio Roccatagliata.
Em comum, também, é a perda quase que diária de bens patrimoniais, quer seja por negligência dos proprietários, sejam eles particulares ou públicos, quer seja por interesses da especulação imobiliária. O mais comum é que ambos estejam associados, resultando a demolição de nossa história e memória.
O movimento Chega de Demolir Porto Alegre, que teve seu nome e atuação inspirado no Basta de Demoler, foi convidado a participar, através de sua articuladora, Jacqueline Custódio. O caso que foi apresentado foi o do Cais Mauá e toda mobilização popular para a preservação do patrimônio histórico e pela lisura dos procedimentos administrativos, que devem visar o interesse público, acima de tudo.

Como resultado do evento, houve uma aproximação dos diversos movimentos em prol do preservação de nosso bens e de nossa identidade, oriundo dos 4 países, numa troca extremamente importante para conseguirmos avançar nas lutas não só de manutenção de referenciais de nossa memória, mas pela busca de uma qualidade de vida para todos.


Para assistir o que foi discutido, acesse os vídeos disponíveis no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=Xzmd76cJk28 (este tem a apresentação do Chega de Demolir Porto Alegre -  minuto 28 até 1h e 4 min)